19/03/2024

Andrew Haigh utiliza mortos e metáforas em Todos Nós Desconhecidos para falar sobre a solidão gay

O diretor embala a história de Adam e Harry com uma camada de realismo fantástico na qual os mortos povoam o cotidiano do protagonista. É um recurso pouco visto em filmes sobre o amor entre dois homens.  O resultado é um conto tocante sobre as rejeições e opressões contra a criança queer e a solidão vividas por homens gays.

Eduardo Barbosa ▪ 19 mar 2024


A
dam (Andrew Scott) é um roteirista que vive em Londres e mora em um grande prédio de apartamentos quase vazio. Um dia o alarme de incêndio dispara. Ele sai pelos corredores desertos, desce para a rua e avista da calçada seu único vizinho no edifício. É Harry (Paul Mescal), que logo depois bate em sua porta com uma garrafa de bebida na mão e uma ideia erótica na cabeça. Adam não aceita nem uma coisa nem outra. Dispensa o rapaz sem hesitação. Mais tarde, Adam descobre que a intenção de Harry ia muito além de uma bebida ou de sexo casual. Ele só não suportava mais sua solidão.

A câmera está sempre a enquadrar o gigante prédio vazio. Metáfora para um mundo solitário habitado por dois homens que se atraem, mas um deles está apegado demais ao sentimento de rejeição para ser acolhido e acolher alguém. Sentir peso na solidão não é incomum dentro do recorte populacional do qual Adam faz parte. De acordo com um estudo do Williams Institute da Universidade da Califórnia, 60% dos idosos gays sentem falta de companhia e 50% se sentem isolados. Embora os dois personagens do filme não sejam idosos, eles também experimentam essa sensação de isolamento e solidão. E ambos procuram formas distintas de atenuar o sofrimento advindo dessas percepções. A trama de Andrew Heigh destrincha os dois lados do manejo da solidão gay. De um lado temos Harry às voltas com as dores de sua solidão insuportável e do outro há Adam e seu retorno aos pais.

O protagonista está escrevendo um novo roteiro quando os reencontra. A mãe quer saber sobre sua vida, se tem namorada, se é bem sucedido no trabalho. Ele conta que é gay e a mãe não tem uma boa reação, tinha certeza sobre sua heterossexualidade, "ele nem parecia homossexual", diz ter ouvido que esta vida é muito solitária. Ele nega, sem muita convicção. Em outra das visitas há uma conversa sobre sexualidade entre ele e o pai. Adam  o questiona se sabia de sua orientação sexual. O pai sabia desde muito cedo e pergunta se era difícil com os colegas de escola. O filho narra todas as violências sofridas por ser um menino gay e pergunta por que o pai nunca entrou no quarto para saber porque sempre chorava na volta do colégio. O pai responde que era melhor não conhecer as causas do choro. Não havia o que fazer a não ser ignorar. Se fosse um dos colegas da escola, também faria com Adam o mesmo que aquelas crianças faziam.

Adam cresceu com uma rejeição dupla, dentro e fora da família. A mãe se apegava em sua imagem ideal de filho heterossexual e cegava-se para a realidade. O pai sabia, mas silenciava-se. Ambos precisavam se afastar de um lugar de escuta para não acolher os sofrimentos e a diferença do filho. A família de Adam é um braço da sociedade inglesa homofóbica dos anos cinquenta e sessenta. Seu projeto de homem é o grande macho heterossexual. Aquele que desde muito cedo já aprende a agredir o feminino e principalmente se esse feminino estiver em um menino. Essa sociedade e os pais formados por ela não têm interesse em proteger crianças como Adam. Eles querem proteger a heteronormatividade. Então, pouco importa se essa criança queer sofre. O mais importante é reprimir o feminino dos meninos e o masculino das meninas.

Ao tornar-se adulto, Adam ainda ainda carrega em si o menino rejeitado e traumatizado dos tempos de escola. Faz do grande prédio vazio o seu quarto da infância para abrigar seus sofrimentos solitários. Mas as conversas durante o retorno aos pais lhe fazem bem. Há reconciliações, perdões. Ele é acolhido. Essa volta aos traumas vividos com os pais permitem uma viabilidade das vivências amorosas do filho. É na reelaboração das experiências vividas na infância que Adam pode se abrir para o mundo fora do seu gigantesco prédio vazio. Ele olha para os eventos traumáticos não mais como o menino, mas como homem adulto. Isso lhe possibilita ter capacidade de controlar os efeitos dessas vivências. Surge um interesse pelo olhar do vizinho. Os dois se encontram novamente e se acolhem. A mãe e o pai gostam de Harry e estimulam o filho a tocar o romance adiante. O relacionamento é efeito do acolhimento dos pais. Mas o retorno aos pais produz um efeito duplo. Adam se liberta para vivências amorosas, mas se prende à aprovação deles. Um homem desejando manter os laços afetivos com um companheiro e angustiando-se por não saber se seus pais, vivos ou mortos, aceitariam o relacionamento.

De modo geral, Todos Nós Desconhecidos é como uma mistura de O sexto Sentido (1999) com o livro Pedro Páramo, de Juan Rulfo. No longa dirigido por M. Night Shyamalan o personagem de Bruce Willis é um psicólogo ajudando o menino Cole Sear a lidar com as pessoas mortas com as quais convive cotidianamente. Já no romance de Rulfo o protagonista sai em busca do pai e encontra e conversa com mortos pelo caminho percorrido. Andrew Haigh também lança mão desse tipo de realismo fantástico. Já no primeiro ato o espectador sabe que os pais para quem Adam retorna já morreram há mais de uma década. A dúvida a pairar depois dessa revelação é sobre a realidade de outros personagens, como Harry. Se o protagonista interage com gente morta como se estivessem vivas como saber se ele mesmo e seu companheiro não estão mortos? Mas essa é só uma questão de fundo. Não importa muito se ao seu redor há apenas fantasmas ou se vive de fantasia em fantasia para manejar o peso de sua solidão. A grande questão é qual a função dessa gente morta com as quais Adam se relaciona.

O retorno aos mortos é um ponto muito interessante do filme. Para a psique humana não existem mortos. Porque os efeitos provocados no encontro com o outro gera experiências que se mantêm reverberando em nós enquanto vivemos. Na maioria das vezes é um processo inconsciente. É como se aqueles com os quais nos relacionamos ao longo da vida fossem parte de nós até nosso último fechar de olhos. Até lá, todos que nos geraram alguma vivência significativa, boa ou ruim, continuam vivos em nós. Por isso os integrantes do círculo social de Adam se fazem presentes em sua vida adulta, mesmo mortos há tempos. O efeito desses encontros dura enquanto Adam estiver vivo e ele vai convivendo com seus mortos tal como um Pedro Páramo ou um Cole Sear.

Esse longa-metragem do diretor britânico chega ao cinema em um momento de recrudescimento dos crimes de ódio contra LGBTs+ na Inglaterra. A homofobia era institucionalizada no Reino Unido, do qual a Londres de Adam faz parte, até 1967. Foi nessa época de legislação implacável contra sexualidades dissidentes que Alain Turing (1912-1954), o pai da computação, foi condenado por "indecência grave" em 1952, castrado quimicamente e morto por suicídio por manter um relacionamento amoroso com um homem de 19 anos. Em 2018 o registro desses crimes no país teve um aumento de 28% em relação ao ano anterior, de acordo com a Reuters. Levantamentos da Associação Internacional Europeia  de Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais apontam que os os suicídios aumentaram nos últimos dez anos na Europa. Isso mostra que o problema é global. E aqueles fantasmas de uma Inglaterra violenta contra LGBTs+ pré-anos 60 retornaram. Isso mostra que fantasmas não vivem apenas no nível individual da psique humana. Eles também habitam a consciência coletiva e estão sempre prontos para um retorno a partir de discursos conservadores e extremistas de políticos, religiosos e organizações de direita.

Brasileiros sabem muito bem que estas violências contra homens como Adam e Harry não se restringe apenas ao Reino Unido. No Caso do Brasil, de acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia, 45,89% das vítimas de crime de ódio em 2021 eram homens gays e 44,62% eram travestis e mulheres transexuais. Dessas mortes, 82,91% ocorreram por homicídio e 8,23% foram por suicídio. Em 2022 ocorreu uma morte a cada 34 horas. Dessas vítimas, 52% eram homens gays e 45% eram travestis e mulheres transexuais.  E 67% da totalidade das vítimas tinham entre 19 e 45 anos. Os efeitos dessa violência quando não mata por homicídio resulta em adoecimento mental e suicídio.

São recortes desse cenário de violência, rejeição, adoecimento mental e solidão que Andrew Haigh apresenta na história de Adam e Harry. Todos Nós Desconhecidos é o conto de um homem de meia-idade tentando sobreviver à esse mundo homofóbico muito real fora da tela e abrigando-se em um lugar solitário para manter-se a salvo. Sobrevivência. Mas para muitos homens gays o isolamento não é solução. Não é o remédio. É o veneno. Prepare os lencinhos para o ato final.




Todos Nós Desconhecidos

Título original: All Of Us Strangers
Ano: 2023
Duração: 1h 45min
Direção e roteiro: Andrew Haigh
Elenco principal: Andrew Scott, Paul Mescal, Claire Foy e Jamie Bell
Origem: Reino Unido







15/03/2024

O filme de Denis Villeneuve enche os olhos e inunda os ouvidos, mas cansa ao concentrar a maior parte da ação em sua última hora

Após sua Casa ser eliminada na primeira parte da saga, Paul Atreides retorna com sede de vingança e parte em uma jornada de libertação dos Fremen do jugo do Imperador em Duna: Parte Dois. Villeneuve e Hans Zimmer produzem o espetáculo cinematográfico do ano com um filme tecnicamente impecável, com visual e trilha estonteantes.

Eduardo Barbosa ▪ 15 mar 2024


No universo de Duna, a humanidade tomou conta da galáxia. Há os Harkonnen que governam pela brutalidade e violência. Os Corrino, manipuladores e conspiracionistas. Os Fenring, astutos e influentes. As Bene Gesserit, uma irmandade feminina de religiosas manipuladoras e espiãs. Os Atreides que são líderes políticos natos. Os Fremen, um povo nativo do árido planeta Arrakis. Enquanto esses últimos são só um povo de Arrakis, os outros são chamados de Casas. Acima de todos esses povos há o Imperador, aquele que governa o universo. É um sistema no qual todos estão submetidos ao poder do Imperador. Em resumo, enquanto uns lutam pela vida, outros ditam as leis regentes da vida no universo.

Os Fremen, simples arrakianos a lutar pelo direito à vida, são centrais em Duna. Arrakis é o único local do universo onde há a Especiaria, um resíduo produzido pelos vermes da areia. A especiaria aumenta a percepção humana, habilita a clarividência, é uma fonte de poder, o alimento das Bene Gesserit. Por isso, dominar Arrakis e subjugar seus habitantes naturais é importante para o Imperador. Controlar os Fremen equivale a controlar o acesso à especiaria e ao poder advindo dela.

No primeiro filme, os Atreides, também chamados de Casa Atreides, foram designados para governar Arrakis. Mas tratava-se de uma conspiração entre o Imperador e uma outra Casa, motivada por um temor de que os Atreides crescessem politicamente e se tornassem uma ameaça ao governo central. O objetivo era eliminar todos os Atreides. Mas um dos herdeiros da Casa sobreviveu. Como os Fremen precisam lutar constantemente pela própria sobrevivência, restou a Paul Astreides (Timotheé Chalamet) e sua mãe (poupada por ser uma Bene Gesserit) se aliarem a esse povo contra o Imperador e as Casas que o apoiam. O segundo filme narra a vingança do último Astreide sobre os algozes de sua Casa.

Paul é rejeitado entre os Fremen por ser um nobre. Não é um deles. Logo, não é bem-vindo em seus círculos. Mas há uma profecia sobre um escolhido que irá guiar esse povo para a liberdade e a mãe de Paul (Rebecca Ferguson) age para convencê-los de que o filho é o messias. Paul vai de rejeitado a reverenciado graças ao poder de manipulação da mãe. E no processo de reerguer a Casa Atreides, tornar-se o predestinado é só um meio para atingir um outro fim. Mãe e filho manipulam os Fremen. A fé do povo é crucial para a empreitada e a substância do verme da areia é o combustível principal que faz de Paul um messias.

É curioso como Duna desenha os seus "perigosos fundamentalistas religiosos" da história. Eles se parecem com os praticantes de religiões do Oriente médio. Como se não houvessem fundamentalistas religiosos em religiões ocidentais. O roteiro escrito por Villeneuve e Jon Spaihts fecha os olhos para as religiões contemporâneas cheias de discursos de paz e com históricos de violência. A inquisição e suas fogueiras, a praga de pedofilia nos templos católicos, médiuns que se revelam abusadores sexuais em série em templos espíritas. Nada disso serve como inspiração para criar os fundamentalistas de Duna. Eles preferem olhar para o que o Ocidente chama de religião de terrorista. Isso não aparece apenas entre os Fremen fanáticos. Está na estética das Bene Gesserit com suas vestes idênticas às burcas. O perigoso é sempre um outro para os ocidentais, nunca ele mesmo.

O roteiro também derrapa ao inserir na trama um romance entre Paul e Chani (Zendaya). A relação surge rápida demais em um filme com quase três horas de duração. E acontece como em um daqueles romances baratos de banca de jornal. A mocinha detesta o mocinho, mas logo se apaixona por ele. Os dois se declaram, fazem juras de amor com diálogos piegas, mas não podem ficar juntos. O espectador já viu isso em uma centena de filmes românticos e melhor trabalhado. Villeneuve sabe que tem um clichê em mãos e passa rapidamente pela construção do romance, como se quisesse se livrar logo daquilo.

O elenco todo estelar tem algumas atuações que se destacam. Austin Butler magnetiza interpretando o violento Feyd-Rautha. O ator de Elvis (2022) exibe um domínio absoluto de cena em Duna. É um trabalho robusto, alguns níveis acima do intérprete do protagonista, fica muito evidente. Já o visual do filme é todo impecável. Villeneuve sabe como fazer de Duna um deleite para os olhos. As cenas de batalha, as viagens dos Fremens pelo deserto, tudo é opulento, grandioso. A trilha sonora do Hans Zimmer acompanha essa opulência. É cheia de graves potentes, estrategicamente espalhados pelo filme. Estes dois elementos na tela e nos auto-falantes do cinema fazem do longa-metragem uma ótima experiência.

Mas apesar de ser bonito na tela, ter atuações memoráveis, uma trilha impecável e elenco de estrelas, Duna - Parte 2 não tem uma história com singularidade suficiente para criar uma marca própria e tornar-se um clássico da ficção científica. Villeneuve aposta mais na estética e na técnica e dispensa inovações em relação à trama. O espectador pode ter a sensação de que não há muita novidade na história. O povo oprimido sendo salvo por um estrangeiro é comum no cinema, aparece do faroeste aos filmes de super-heróis. Nem o ambiente inóspito e selvagem de Arrakis resiste após a primeira parte. Onde há a espécie humana há subjugação dos não-humanos. Os ameaçadores vermes de areia viraram meio de transporte. A natureza dominada e subjugada, como humanos a preferem. Já o mocinho se deslumbrando com um poder incontrolável já foi visto na franquia Star Wars, por exemplo. Além disso, o filme finca demais os pés nas maquinações políticas e só se eletriza já próximo do final. Ganha outro ritmo no terceiro ato, mas cansa até chegar lá.





Duna Parte Dois

Título original: Dune Part Two
Ano: 2024
Duração: 2h 46min.
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denni Villeneuve e Jon Spaihts
Elenco principal: Timotheé Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Josh Brolin, Austin Butler, Florence Pugh, Dave Bautista, Christopher Walken, Léa Seadoux, Stellan Skarsgard e Charlotte Rampling
Origem: USA

10/03/2024

O espectador é o jurado em Anatomia De Uma Queda de Justine Triet

Poucos dramas de tribunal conseguem ser tão intrigantes como este filme de Justine Triet. O roteiro, assinado por Arthur Harari e pela diretora, nunca entrega respostas fáceis para o espectador elucidar o caso. As perguntas se acumulam. Não sabemos em quem acreditar. Só nos resta seguir as evidências apresentadas pela defesa e pela acusação. É engenhoso e funciona.


Eduardo Barbosa ▪ 10 mar 2024



A trama já abre com um homem morto na neve. O cadáver é Samuel, marido francês da escritora alemã Sandra. A morte é o incidente incitante, o ponto que insere apuros na vida da protagonista. A queda do marido acontece em um momento que leva o espectador e a polícia a suspeitarem de Sandra. Neste dia ela estava em casa tentando conceder uma entrevista sobre  sua carreira. Mas não conseguiu. Samuel colocara uma música para tocar em volume altíssimo enquanto trabalhava no sótão. Sandra e a entrevistadora e o espectador são acossados pelo incômodo que paira no ambiente. Não é só o som. Elas decidem deixar a conversa para outra hora.

Uma dezena de perguntas inundam o espectador. Por que Sandra não subiu e pediu que ele abaixasse o volume? Quem é este homem? É um marido violento? Nada disso é respondido de pronto. A moça vai embora. O filho do casal, um menino com problemas de visão, sai para passear com o cachorro. O espectador passeia com ele pelos arredores do chalé. Enquanto a música continua na casa. Ele retorna algum tempo depois. O som ainda está ligado. Samuel aparece pela primeira vez na tela. Está morto sobre a neve que cobre o chão sob a janela do sótão. Ninguém sabe o que aconteceu. Dentro ou fora da tela. 

Durante as investigações surgem três hipóteses. A acusação aposta em assassinato cometido pela esposa. Sandra diz que só pode ter sido uma queda acidental. O filho diz ter ouvido uma discussão amigável quando estava lá fora com o cão, mas se atrapalha na reconstrução da cena. Como ouviria uma conversa amigável de longe se o som estava tão alto? O advogado de defesa acredita na cliente, mas prefere construir uma tese sobre suicídio. O drama de tribunal ganha musculosidade a partir desse ponto. Nas evidências apresentadas pela acusação está a forma de Justine Triet contar a história do casal. Segredos da sexualidade da escritora emergem. Brigas domésticas violentas aparecem em gravações do computador de Samuel. Ela parece a responsável pela queda. O promotor de justiça consegue abalar as certezas do filho sobre a inocência da mãe. Tudo leva a crer que ela jogou o homem janela abaixo no dia da entrevista. Mas a tese sobre suicídio ganha novas evidências.

Sandra mente algumas vezes. O advogado tem um caso com ela. O menino não se mostra uma testemunha confiável. A acusação usa até os romances de autoficção escritos pela acusada como prova do crime de assassinato. E quando o filme se encaminha para o final, tudo que queremos saber é o que aconteceu naquele sótão. Mas Triet dá de ombros. Não há retorno para a cena central disparadora do incidente incitante. O ponto central é convidar-nos a refletir sobre como uma mulher que ascendeu profissionalmente ameaça a frágil estrutura que organiza o masculino. Quando os créditos sobem na tela a história continua rodando em nossa mente. O filme monta um corpo de jurados com o espectador. É nisso que reside sua excelência como drama de tribunal, pois uma das características do tribunal do júri  é sua composição feita com pessoas comuns e não especialistas em aplicação das leis. A partir das peças de acusação e defesa, quem te convence mais? O promotor ou o advogado de Sandra? Triet não bate o martelo, a sentença quem dá é você.



Anatomia De Uma Queda

Título original: Anatomie D'une Chute
Ano: 2023
Duração: 2h 32min.
Direção: Justine Triet
Roteiro: Artur Harari, Justine Triet
Elenco: Sandra Huller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner
Origem: França




Vidas Passadas de Celine Song é um delicado conto de amor a encantar com sua trama livre de clichês do gênero

Hae Song toca a vida com a memória de um amor do passado na ponta dos dedos, uma memória viva, memória pura. Já para Nora talvez esse passado ainda não se atualizou com reencontros suficientes no presente para gerar a quantidade certa de camadas de In-Yun para juntá-los. Seria preciso mais vidas passadas gerando memória-hábito para construir um presente para a junção dos dois? Ou o momento certo chegou?


Eduardo Barbosa ▪ 10 mar 2024



O filme conta a história de Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Yoo Teo). Eles nasceram em Seul, na Coreia do Sul. E ali viveram um amor de infância. Até que a família de Nora emigrou para o Canadá e seu primeiro amor ficou no passado. Depois ela se mudou para Nova York e construiu uma carreira como dramaturga. Décadas após deixar sua terra natal, Nora descobriu por acaso seu antigo namorado de infância em uma rede social de seu pai. Refizeram o contato perdido e mantiveram um relacionamento à distância. Mas a moça não levou as coisas adiante e pediu um tempo. Nesse hiato conheceu Arthur (John Magaro). Entre afinidades e boas doses de pragmatismo, se casou com ele para obter uma cidadania americana.

Hae chega em Nova York alguns anos depois que Nora já está bem estabilizada. A chegada do rapaz trás uma espécie de afetividade incômoda. Nora mantêm alguma distância apesar de receber Hae com gentileza. Celine Song sabe criar essa sensação com destreza por meio de enquadramentos nos quais os personagens se localizam nos cantos da fotografia. Nora tem sentimentos por ele. Mas o tempo parece hesitar em aproximá-los. Como se as rodas do destino ainda não tivessem girado o suficiente para fechar o terceiro ato do casal.

Ela lhe apresenta a cidade. Leva-o a lugares aos quais nunca esteve com o marido e Arthur se incomoda. Cria vivências exclusivas para um velho amor que está sempre se renovando. Tudo é único com Hae Sung. Os três se reúnem para jantar. Arthur fica a sobrar entre os tantos assuntos tecidos entre Nora e Hae em um idioma que ele conhece pouco. Mas Arthur é um homem afável. Há alguma insegurança nele, mas não há agressividade, não cede a impulsos de ciúme. Mais tarde ele acaba trazendo à baila a própria dúvida sobre os sentimentos da companheira em relação ao visitante. É uma conversa madura. Celine jamais cai nos clichês dos contos de romance comuns. Eles nunca brigam, apenas conversam. Hae Song é tomado por Arthur como uma parte da história da companheira. Aceita a explicação de que ele não é um rival. Essa maturidade dos personagens gera uma das mais sublimes cenas do cinema romântico contemporâneo nas últimas cenas. Há muita beleza nele ao amparar a dor dela.

Arthur, interpretado pelo ótimo John Magaro de First Cow (2019), tem a construção absolutamente certa. E Greta Lee e Yoo Teo tem a química adequada para a composição do casal desencontrado. A dosagem de acanhamento e desinibição aplicada aos dois personagens nunca os fazem soar incoerente. Junta-se a isso a direção competente de Song e o resultado é um belo e original conto de amor.



Vidas Passadas

Título original: Past Lives
Ano: 2023
Duração: 1h 46min.
Direção e roteiro: Celine Song
Elenco: Greta Lee, Yoo Teo e John Magaro
Origem: Coreia do Sul, EUA

O Rejeitados é mais um filme natalino repleto de clichês e final açucarado

Os rejeitados é uma daquelas comédias com histórias natalinas que apostam em finais açucarados, a depender do personagem para o qual se olha. Há alguma dose de negatividade aqui e ali. Mas o modo como as coisas terminam impregnam o filme com uma atmosfera natalina previsível.


Eduardo Barbosa ▪ 10 mar 2024



O longa-metragem conta a história de Paul Hunham (Paul Giamatti). Ele é um professor de história aborrecido que na chegada do recesso natalino é obrigado a ficar na escola cuidando de alunos impedidos de um retorno ao lar. O roteiro não economiza nos clichês dos filmes escolares. A figura do professor rabugento e odiado é o coração da trama. Não faltam os bullyings entre adolescentes, o aluno brigão e a grande vítima dos colegas de turma. O primeiro ato é uma grande reunião desses clichês. Soa ainda mais repetitivo quando tudo isso é embalado com traços da nova e cínica moda hollywoodiana, a detonação das classes altas. A escola, lotada de super-herdeiros, é um parque de diversões no qual Hunham se diverte sendo cruel até dizer chega.

A trama vai se encorpando do fim do segundo ato em diante. Perde um bom tanto dos traços iniciais de comédia adolescente. Mas nunca atinge um ponto completo de maturidade. Há um incontável número de piadas bobas. O espectador que já está acostumado com o tipo de história desenhado logo nas primeiras cenas sabe exatamente para onde o roteiro vai. São poucas surpresas e muita previsibilidade.

Talvez, as melhores coisas do filme sejam as atuações de Paul Giamatti, interpretando o tal professor. E Da' Vine Joy Randolph na pele da chefe de cozinha da escola. Ambos atingem o tom exato dos personagens do começo ao fim. Mas as excelentes atuações não salvam o filme de seus problemas com o roteiro.



Os Rejeitados

Título original: The Holdovers
Ano: 2023
Duração: 2h 13min.
Direção: Alexander Payne
Roteiro: David Hemingson
Elenco principal: Paul Giamatti, Da'Vine Joy Randolph e Dominic Sessa
Origem: USA

09/03/2024

A dádiva dos mortos em A Sociedade Da Neve de Juan Antonio Bayona

O belo filme do diretor espanhol, com um elenco pouco conhecido e montanhas inóspitas como antagonista, narra uma história trágica na qual a morte se transforma em dádiva.


Eduardo Barbosa ▪ 09 mar 2024


Em 1972 um avião saiu de Montevidéu, no Uruguai, levando 45 pessoas para uma competição de rugby no Chile com jogadores, seus amigos. Mas o voo 571 não completou a rota programada. Caiu entre as montanhas cobertas de gelo dos Andes. Parte dos passageiros morreu. Outros sobreviveram. É sobre estes últimos que a história de A sociedade da neve se debruça.

O local da queda é inospitalidade em estado bruto. Sem vegetação. Sem vida animal. Apenas neve a recobrir quilômetros a perder de vista. Não há  como estabelecer contato com o mundo fora das montanhas porque os equipamentos de comunicação do avião ficaram espalhados por locais de difícil acesso. É a partir da queda que o espectador começa a criar laços mais intensos com os personagens na tela.

O grande trunfo dessa história é que ela comove por um ponto que a maioria dos filmes mais ou menos similares não conseguem. Há no cinema um sem-fim de histórias de alpinistas, aventureiros, exploradores de montanhas, enfrentando toda sorte de intempéries e infortúnios. No caso destas obras, ir até a montanha, apesar dos riscos, é um objetivo dos protagonistas. Quase um flerte com a morte. Impulso ao inanimado. A montanha em gelo. Inabitável. Retorno ao nada. Pura pulsão de morte. Conquistar seu pico é desafiar os limites da vida convidando a morte para um baile. Mas A sociedade da neve inverte estes objetivos. O único desejo pulsante é de vida. Ele vibra furioso em cada um dos personagens. Eles nunca desejaram a montanha. É a distância do pico que os atrai.

Juan Antonio Bayona se agarra ao instinto de vida para estruturar o roteiro do filme. Os sobreviventes sabem de seu destino. Morrerão. Mas existe vida demais dentro deles para se curvar à inexorabilidade desse destino. Eles se unem para facilitar um resgate. Tentam criar um meio de comunicação a partir dos restos do avião. E, finalmente, se organizam para decidir se um corpo humano é alimento sagrado ou profano. As cenas de partilha são de alto impacto. Alguns deles recusam o alimento. Suas crenças religiosas entram em conflito com a nova forma de sobrevivência.

Mas acaba emergindo ali uma nova sociedade na qual as crenças precisam ser repensadas. Surge um novo contrato. Em bilhetes pós-mortem os companheiros de viagem entregam o próprio corpo para partilhar entre aqueles que ainda resistem à montanha. É a dádiva dos mortos. O impulso de vida transcendendo a morte. O ingerido não é carne, é a esperança concedida na dádiva.

O elenco de A Sociedade da Neve, apesar de não ser conhecido mundialmente, é afiado. O resultado é um filme repleto de personagens convincentes e dramas quase palpáveis na tela. Os diálogos são bons e embora estourem vez ou outra algumas frases de efeito as interpretações conseguem neutralizar-lhes um efeito piegas. Em linhas gerais, o belo e trágico filme de Bayona é um ensaio dramático sobre a resiliência humana.



A Sociedade Da Neve

Título original: La Sociedad De La Nieve
Ano: 2023
Duração: 2h 24min.
Direção: Juan Antonio Bayona
Roteiro: J. A. Bayona, Nicolás Casariego Córdoba, Jaime Marques e Bernart Vilaplana
Elenco: Enzo Vongrincinc, Agustín Pardella, Matías Recalt, Tomás Wolf, Diego Vegezzi, Esteban Kukuriczka
Origem: Espanha, Uruguai

04/03/2024

A Cor Púrpura: o racismo está presente, mas a dominação masculina é o principal antagonista

A cor púrpura é mais uma daquelas histórias que levam o espectador ao limite do suportável. A tese do filme de Blitz Bazawule, inspirado no romance de Alice Walker publicado em 1982, é que as mulheres em uma sociedade racista nunca estão a salvo. Se a violência lá fora é monopólio dos brancos contra negros, dentro de casa os homens pretos corporificam a violência do patriarcado contras suas mulheres. Acompanhar as agruras dessas mulheres oprimidas por quem deveria se opor ao violento mundo de dominadores e dominados é uma tarefa árdua.


Eduardo Barbosa04 mar 2024

No início há uma cena em que um homem toca um banjo sobre um cavalo. Ele passa embaixo de uma árvore na qual duas meninas brincam e cantam sobre um galho de árvore. Os acordes dos dedos do cavaleiro acompanham as vozes das garotas. É perfeitamente harmonioso. Os números musicais de A cor púrpura são construídos sempre com esta mesma toada. A música nunca aparece na tela do nada. Um martelo batendo em uma tábua, marretas abrindo estradas, funcionam como os primeiros acordes de alguma música a surgir. É bem construído. E é assim que Blitz Bazawule trabalha na nova adaptação do romance de Alice Walker. Um musical. Mas se a música se origina de relações harmoniosas, o mesmo não se dá com as relações de gênero. Homens e mulheres vivem em uma sociedade regida por uma violência atroz na qual o feminino é dominado pelo masculino.

Na trama, Celie (Fantasia Barrino) vive em uma casa com a irmã e o pai. Ela trabalha com os serviços domésticos e tem bebês que são tomados pelo pai no momento do parto. O espectador fica sem saber durante boa parte do filme de quem são os filhos de Celie. Isso porque o roteiro decidiu suavizar a relação de abuso sexual entre pai e filha nesta nova versão. Na obra de Steven Spielberg de 1985 isso já ficava claro logo no início. Se Celie leva uma vida dura na casa do pai, passa por maus bocados na casa do homem com o qual o pai a obriga a se casar, Mister (Colman Domingo). De submissa ao pai ela passa a submissa do marido. Mister, como o pai de Celie, pratica com ela toda sorte de violência: física, sexual, psicológica. E quando a irmã Nettie (Halle Bailey), também abusada pelo pai, vai morar com eles, ele também tenta violá-la. Mas Nettie  reage, é agredida e expulsa de casa. E de sofrimento em sofrimento toca-se a história da protagonista.
As personagens são divididas em dois grupos. Há as mulheres submissas e as mulheres que não se curvam aos homens. Celie e Nettie são as mais castigadas. Sofie (Danielle Brooks) e Shug (Tahaji P. Henson) são as resistentes, embora também sofram em algum momento. As duas últimas são motivo de inveja e admiração da protagonista. Há outra suavização em relação ao longa de 1985. Naquela versão, Celie se apaixona por Shug com direito a beijos e intimidades. O novo roteiro de 2023 reescrito por Marcus Gardley é bastante tímido. Não está tão interessado em temas que alguns poderiam considerar polêmicos demais.

É um filme duríssimo de ser assistido. Celie sofre do início ao fim, sem descanso. É preciso muito estômago para suportar as duas horas de duração. Mas é preciso continuar até os últimos minutos para saber se ela vai conseguir se livrar da submissão ao marido e das violências domésticas e se vai reencontrar a irmã que desapareceu desde a expulsão de sua casa. O formato do roteiro segue a jornada do herói. A protagonista cruza um caminho cheio de atribulações até tornar-se outra.

O filme diz muitas coisas em suas subcamadas. Uma delas é como o oprimido, homens negros, pode tornar-se um opressor. A história corre em uma época na qual o racismo era institucional.  Mas a trama quer pôr sob holofote a violência do patriarcado que faz qualquer homem ser violento, seja ele branco ou preto. Qualquer homem dentro dessa estrutura é violento. Não há caminhos para um sujeito masculino afável. A submissão das mulheres é prioridade para todos eles. O vilão no roteiro, portanto, não pode ser apenas um homem. É o sistema que os ensinam esse comportamento. Mas não é o sistema que aterroriza Celie cotidianamente. Seu algoz tem um nome. É o marido, Mister.

O arco de Mister segue os passos do romance de Walker. E o seu desfecho é tão doce que beira o intragável. Como uma mulher que foi brutalizada de todas as formas possíveis por esse homem pode aceitar a relação harmoniosa do final da história? Pode parecer uma atitude nobre da parte dela, mas é pouco digerível. Parece que tanto o livro quanto o filme querem dizer que o perdão genuíno supera qualquer sofrimento causado por alguém que é um produto de uma sociedade machista violenta. De novo, o vilão não é Mister. É o mundo machista que o criou. É bonito na teoria, mas fica pouco convincente. Adocicado demais. Muito disneilândico. Spielberg apresentou um outro desfecho para Mister. Naquela versão, o marido repara seus erros e não procura por uma reaproximação com Celie. Eles não se tornam amigos. Faz mais sentido. Superar os traumas de uma relação violenta não significa tornar a conviver com o agressor.

De modo geral, esta refilmagem mais retira do que acrescenta ao original de 1985. Exceto as cenas de Shug Avery, os números musicais em sua maioria parecem muito artificiais. É perceptível que a voz para as canções foram inseridas depois das gravações de cenas. Não funcionam. E o tom do primeiro ato é solar demais para uma história tão cheia de sofrimentos. Talvez por isso parte da violência retratada no original desaparece. Outro problema é tentar fazer o espectador pensar que os números musicais são imaginativos, fantasias de Celie, retira a magia das cenas musicais. Então, entre ver um clássico bem contado e a novidade que o revisita, é melhor ficar com o primeiro.




A Cor Púrpura

Título original: The Purple Color
Ano: 2023
Duração: 2h 20min.
Direção: Blitz Bazawule
Roteiro: Marcus Gardley
Elenco principal: Fantasia Barrino, Colman Domingo, Halle Bailey, Tahaji P. Henson e Danielle Brooks
Origem: EUA




21/02/2024

Zona De Interesse (2023) incomoda e instiga-nos a pensar sobre a bestialidade humana

A proposta de criar um filme sobre a vida de uma família nazista sob a forma de uma ficção etnográfica pode entusiasmar uma parcela de espectadores acostumados com os debates acadêmicos e filosóficos. Para leitores e estudiosos de Hannah Arendt, por exemplo, não é difícil aplicar ideias como "banalidade do mal" ao filme de Jonathan Glazer. Zona de interesse pode ter muitos significados para as classes intelectuais e dizer bem menos do que pretende para os espectadores comuns.


Eduardo Barbosa ◼ 21 FEV 2024



A maioria dos filmes sobre o Holocausto trazem as vítimas para o centro da narrativa. Já vimos, portanto, dezenas de filmes nos quais o horror do nazismo é retratado do ponto de vista dos perseguidos pelo regime. Na década de 90, por exemplo, Clive Owen protagonizou um desses filmes, Bent (1997), dirigido por Sean Mathias. Seu personagem é um cativo do regime nazista. Ao ser transportado para um campo de concentração ele passa por um casal à beira do caminho fazendo um piquenique. A marcha dos condenados não os comove. Jonathan Glazer parece ter colhido exatamente esta cena para destrinchá-la em Zona de interesse. É apenas esse tipo de personagem que aparece em seu longa-metragem. A trama desenha o retrato de uma família "eleita", os escolhidos do terceiro reich. Histórias sob esta perspectiva não é comum no cinema. Glazer tenta distanciar seus protagonistas do espectador. A câmera os enquadra de longe. Sem plano fechado. Nada de close-ups. Nada de laços de intimidade entre a família nazista e quem os assiste. O importante não são suas expressões faciais, detalhes de suas emoções. É o ambiente. Então, há uma boa quantidade de registros abertos, grandes bocados de cenários.

Hedwig Hoss e seu marido Rudolf Hoss levam uma vida com a qual sempre sonharam. Ela cria os filhos em um casarão de campo. Mantêm um belo jardim repleto de flores e uma horta com muita variedade de plantas. Ele trabalha o tempo todo. É comandante do campo de concentração de Auschwitz, que fica do lado da casa. A família se farta com os pertences dos judeus que chegam ao campo. Casacos de pele. Batons. Há uma naturalidade horripilante em cena. Paira sobre a família uma atmosfera brutal de frieza, enquanto os clarões do fogo dos fornos de Auschwitz invadem as janelas do casarão.

Não se vê um único rosto daqueles que agonizam do outro lado do muro. A família e o espectador apenas ouvem seus sons e os tiros a abatê-los. Indiferença e horror, respectivamente. O mais incômodo é o fato de não haver nenhum monstro na casa. A face do mal com a qual nos deparamos é demasiadamente humana. Uma mãe e um pai construindo um lar para seus filhos. O Lar ideal da promessa nazista. Os dramas do casal são todos familiares. Comuns, banais. O filme é repleto de acontecimentos prosaicos. As brincadeiras das crianças, enamoramentos juvenis, piqueniques em família, diversão na piscina, as viagens do pai, a chegada da avó, a mudança de casa. Um contraste feroz na normalidade do casarão com os horrores de quem sofre na vizinhança. De onde vem tanta frieza? A filosofia política tem respostas.

Thomas Hobbes (1588 - 1679) dizia ser o homem o lobo do homem e nossa convivência pacífica se deu partir de uma espécie de "contrato social" para domesticar nossos instintos. A partir desse acordo uma instituição tomou para si o que Max Webber (1864 - 1920) chamou de monopólio da força e da violência, vetando-se aos indivíduos o uso da agressão como forma de mediação de conflitos. Mas nosso instinto-lobo não foi extirpado, apenas reprimido. Portanto, há um devir-lobo constitutivo do ser humano. Havendo um estímulo ele emerge. A frieza da família Hoss é uma manifestação desse eu-predador vazando pelas rachaduras de uma civilidade em ruínas. No instinto bestial da fera humana não há atrocidades no outro lado do muro. Só se enxerga a Grande Alemanha ariana, terra que mana leite e mel para uma raça pura e cruel.

Zona de interesse faz nosso estômago embrulhar. Gera um incômodo quase insuportável. O retrato na tela não é de uma outra espécie. É como um espelho refletindo aquela nossa parte que precisa ser mantida trancafiada e longe da luz do sol. E ela está ali na nossa frente, solta e livre. 

Apesar dos acertos no filme, parece faltar alguma coisa. As atuações são ótimas. O trabalho com o som e a fotografia também. Já o roteiro não tem uma construção tradicional de personagens e trama. Glazer calibra bem os protagonistas para não permitir conexões emotivas positivas com o espectador, mas não trabalha com um movimento de queda nem ascensão. Tudo se mantêm mais ou menos igual até os créditos finais subirem. É como uma música inteira sendo tocada apenas com uma ou duas notas. Se a intenção é criar um mal estar contínuo diante de nossa capacidade de tornar-mos desumanos, o filme desenvolve bem a proposta. É como uma etnografia fictícia para um ensaio antropológico. Funciona muito bem para uma plateia acostumada com debates filosóficos e acadêmicos, que conhece Hannah Arendt e sabe o significado de termos como "banalidade do mal". Para os demais mortais, grosso da população do mundo, talvez as cenas de um ensaio antropológico não produza efeito algum. O mal chamado nazismo, ensina Quentin Tarantino em Bastardos inglórios (2009), precisa ser definido muito bem como vilão para depois ser descartado. É o cinema-alívio. Catarse. Nos dá uma sensação de controle sobre o mal. A sensação é falsa. Mas talvez seja bem mais pedagógica. É esse o cinema das massas. De que adianta um belo manifesto anti-extremista rebuscado ser eloquente apenas para um pequeno grupo de intelectuais se as massas são mais porosas aos discursos extremistas simplistas? O líder nazista, vale lembrar, foi inserido democraticamente na política pelo voto da população alemã, não entrou de assalto. E por volta de 1919 já bradava para o país que o problema eram os judeus, a raça impura que tirava as oportunidades dos alemães com sua ganância. Isto é, a linguagem do bom e do mal é facilmente assimilável. Nós contra eles. As massas logo compreendem. Então, diante da mensagem e da forma  de Zona de interesse convêm a pergunta: é eficiente para quem?




Zona De Interesse

Título original: The Zone Of Interest
Ano: 2023
Duração: 1h e 46m.
Direção: Jonathan Glazer
Roteiro: Jonathan Glazer, Martim Amis
Elenco principal: Sandra Huller, Christian Friedel
Origem: Reino Unido, Polônia









17/01/2024

Rebel Moon Parte 1: A Menina do Fogo

Eduardo Barbosa ▪ 17 jan 2024



É muito tentador comparar este longa-metragem de Zack Snyder com a saga Star Wars. Afinal de contas a ideia era integrar o universo criado pelo lendário George Lucas. Mas a Disney recusou o projeto e Snyder seguiu outro caminho. No entanto as referências se espalham pelo filme. Mas prender-se nessa única leitura de Rebel Moon faz do filme somente uma colcha de retalhos construída com pedaços e mais pedaços de uma única obra cultuada pelo diretor. A proposta de Snyder é interessante se olharmos por debaixo de sua densa camada de ficção científica com visual suntuoso por debaixo da qual pulsam outras referências para além da saga dos Jedi.

Um dia, enquanto semeia os sulcos do solo em uma lua distante com outra agricultora, Kora, uma forasteira, avista uma nave de guerra surgindo no céu da aldeia. São os homens do Mundo-Mãe. Todos ficam em alerta. Os recém-chegados querem a produção agrícola do local para alimentar os seus soldados. A resistência do líder da comunidade logo é vencida com sua morte. Aos amedrontados lavradores só resta obedecer e se resignar com a exploração que poderia levar ao esgotamento de suas terras cultiváveis. Enquanto alguns moradores tentam organizar um jeito de se livrar dos opressores, Kora decide ir embora dali. Mas ao sair de casa se depara com uma jovem sendo abusada pelos soldados. Ela ajuda a moça e sua interferência provoca um incidente no qual toda a aldeia é comprometida. Ficam livres dos primeiros intrusos. Mas logo chegarão outros. A única saída é organizar uma defesa para proteger a aldeia. No entanto, para montar uma resistência seria preciso recrutar especialistas em combate. Por ali todos são apenas agricultores. Kora e seu vizinho Gunnar partem com um orçamento baixíssimo em busca dos melhores rebeldes para defender seu povo da opressão do Regente. 

Para quem já assistiu aos filmes de Akira Kurosawa é fácil perceber as semelhanças entre a história de Zack Snyder e Os Sete Samurais (1954). Na obra de Kurosawa um bando de ladrões saqueiam regularmente um aldeia de camponeses. Até que eles decidem contratar um samurai para protegê-los dos ataques. A única forma de pagamento é o escasso alimento produzido pelos aldeões. Para fazer o trabalho o samurai decide recrutar mais homens para o trabalho e ele consegue montar uma equipe de sete homens contra um violento grupo de quarenta bandidos.

Na década seguinte John Sturges refilmou a história no faroeste hollywoodiano Sete Homens e um Destino (1960). A adaptação ocidental do conto dos sete mocinhos contra quarenta ladrões trocou os samurais por pistoleiros e caçadores de recompensas e manteve a ideia original. No roteiro de Sturges uma cidadezinha do Oeste dos Estados Unidos é saqueada regularmente por bandoleiros mexicanos liderados pelo chefe Calvera até que os moradores contratam um pistoleiro desempregado para protegê-los dos ataques. Chris Adams, interpretado por Yul Brynner, o caubói androide de Wesworld (1972), parte em busca de outros homens para formar uma equipe contra os bandoleiros. Como o valor do pagamento pelo trabalho é quase irrisório Chris precisa utilizar seus ideais para convencer seus recrutas a ingressarem num plano heróico e suicida. Os dois filmes não são sobre heróis vencendo as forças antagonistas e coroados com finais felizes. São homens às margens da lei sacrificando a própria vida pela liberdade de um grupo oprimido.

Uma das referências de George Lucas para criar Star Wars é o filme de Kurosawa. Snyder volta na mesma fonte para tentar construir sua própria versão de um história intergalática de mocinhos azarados. E enquanto Lucas utiliza o tema mais geral de Kurosawa e se distancia das minúcias do conto japonês, Snyder estreita laços com a referência. Mas perder a mão em releituras dessa história de opressão e desejo de liberdade não é incomum. Foi o caso da versão de 2016 de Antoine Fucqua. Com um orçamento de 108 milhões de dólares o remake arrecadou apenas cerca de 160 milhões. Enquanto o original de Sturges custou 2 milhões e arrecadou quase 10 milhões de dólares.

A estrutura da história de Snyder está nas duas obras pré-Lucas. As últimas cenas do ato final escancaram essas referências ao mostrar a equipe de resistência chegando na aldeia com uma formação de sete rebeldes, como estampado em um dos cartazes do filme. Mas ao pesar a mão nas conexões com o universo Star Wars passa da originalidade para a cópia. Ainda assim as agruras dos aldeões comovem o espectador e os efeitos visuais são deslumbrantes e as criaturas fantásticas enriquecem os cenários. É inegavelmente deslumbrante na tela. Mas é impossível não admitir que Lucas já fez tudo isso com qualidade extrema. Rebel Monn tem muitas falhas a nublar sua suntuosidade visual.

Os personagens são inconsistentes. É flagrante no caso do General Titus que é encontrado bêbado e mendigando em uma rua e após ouvir algumas palavras de Kora nunca mais se toca em seus vícios. A motivação dos personagens para aceitar uma empreitada suicida é pouco convincente. Nemesis parece seguir o grupo sem ao menos precisar saber do que se trata. A trilha sonora é preguiçosa e funciona por algum tempo até se tornar repetitiva e enfadonha, como o slow motion empesteando o filme do começo ao fim. A história central dos agricultores contra os exploradores perde fôlego no terceiro ato e um ponto de virada faz a trama tomar outro rumo explodindo em uma batalha derivada de uma traição dentro do próprio grupo. Funciona apenas para eletrizar o ato final e deixar o desenvolvimento da trama inicial para o próximo filme. O elenco não consegue sustentar os personagens. A argelina Sofia Boutella nunca mantêm o tom da personagem Kora e cambaleia oscilante entre a mocinha de expressão sofrida ou a mocinha assustada ou a soldado durona capaz de provocar abalos na ordem do Mundo-Mãe. Não é coerente com o histórico da personagem e parece uma atriz errada para o papel. Ou a própria personagem é mal construída. Ed Skrein também não parece ser o ator certo para o antagonista Atticus Noble. O personagem se encaixa tão mal com o ator quanto o vilão de Eddy Redmayne em Jupiter Ascendig (2015) das irmãs Wachowski. Falta o elemento fundamental dos mocinhos de George Lucas. Aquela aura mágica de poder dos Jedi. Ou a aura de invencibilidade dos mocinhos de Kurosawa e Sturges. O extraordinário caracteriza esses personagens. Snyder ignora isso e derrapa. Rebel Moon apesar de vistoso e louvável como uma releitura original de um western clássico é cheio de escolhas duvidosas que prejudicam o filme.



Rebel Moon Parte 1: A Menina do Fogo

Título original:
Rebel Moon Part One: A Child Of Fire
Ano: 2023
Duração: 2h e 15min.
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Zack Snyder, Shay Hatten e Kurt Johnstad
Elenco principal: Sofia Boutella, Michiel Huisman, Djmon Honsou, Ed Skrein e Charlie Hunnan
Origem: EUA  




06/01/2024

Maestro

Eduardo Barbosa ▪ 06 jan 2024



Alguns diretores costumam montar um currículo de filmes que, de alguma forma, dialogam entre si. Seja na estética, caso de Almodóvar ou Wes Andersen. Seja a temática, como Christos Nikou e suas questões sobre o amor. Bradley Cooper indica com seu segundo trabalho atrás das câmeras que também segue esse mesmo caminho. Seu tema é a música. Em A Star is Born (2018), o diretor conta a história de ruína de um músico alcoólatra e sua relação conturbada com uma aspirante a cantora. É um drama de tragédia amorosa. Seu longa-metragem de 2023 acompanha o relacionamento nada saudável de um músico com uma aspirante a atriz.

O protagonista de Maestro é Leonard Bernstein. Um maestro e compositor de música erudita nascido em 1918 no Massachusetts. É o próprio Cooper quem o interpreta. Repete a mesma dobradinha diretor e ator vista em A Star is Born (2018). Mas o roteiro não está muito interessado em trazer a trajetória musical de Bernstein para o primeiro plano da trama. Então, não espere por um daqueles filmes biográficos que esmiuçam desde os primeiros anos de vida até os últimos anos do personagem principal. O foco do roteiro é no relacionamento cheio de altos e baixos do maestro com uma atriz. A música é um pano de fundo. E por vezes isso fica evidente nas tantas cenas musicais que deixam o filme arrastado e podem agradar os amantes de música erudita, não o espectador comum.

O filme começa mostrando um Bernstein que se relaciona com homens. Relações efêmeras. O incidente incitante do roteiro está localizado logo nos primeiros minutos quando o músico precisa substituir outro maestro e conduz a Filarmônica de Nova York sem partitura, apenas de memória. Cooper aproveita para retirar a cartilha de técnicas de direção do bolso e joga na tela tomadas panorâmicas, atuações típicas dos anos 50, planos-sequência, fotografia em preto e branco e em cores. Parece um parque de diversões de um estudante de cinema recém-formado. Produz um filme vistoso.

Logo nas primeiras cenas de Maestro estão as pistas para o núcleo da história. Bernstein está fazendo alguma gravação quando interrompe o trabalho e diz que sente muita falta da companheira. É um aviso para o espectador de que este é um conto sobre luto ou fim de relacionamento. Portanto, não se trata de saber se o casal fica junto ou não, mas como eles se separam.

A mulher por quem Bernstein se apaixona é Felicia, interpretada por Carey Mulligan. Os dois vivem um relacionamento longo e com filhos. Mas a atração do marido por homens é o grande obstáculo da convivência pacífica entre eles. A homossexualidade de Bernstein não é segredo para ela, mas isso não a faz aceitar seu casos extraconjugais. O músico continua vivendo seus romances efêmeros como na época de solteiro. E o filme explora cada encontro como se batesse insistente na tecla de exposição de um relacionamento heterossexual de fachada. Felicia tenta desesperadamente se colocar como o único alvo amoroso do marido. Implica com as visitas masculinas de sua casa. Vigia-lhe os passos nas festas. Nada adianta. O espectador pode ter um déjà-vu com esta personagem. Quem já viu O segredo de Brokeback Montain (2005) de Ang Lee entende a sensação de imediato. Carey Mulligan faz uma cópia de sua personagem do filme de Ang Lee.

Em suma, Maestro é um filme para agradar à academia. É bem dirigido. As atuações são excelentes. Fica bonito na tela. Mas a história é lenta e chata e suas duas horas de duração cansam.



Maestro

Ano: 2023
Duração: 2h 11min.
Direção: Bradley Cooper
Roteiro: Josh Singer e Bradley Cooper.
Elenco principal:  Bradley Cooper, Carey Mulligan e Matt Bomer
Origem: EUA





26/12/2023

Beau tem medo

Eduardo Barbosa ▪ 26 dez 2023



Ari Aster reclamou da recepção fria de Beau tem medo. O filme produzido pela queridinha dos críticos, a A24, custou cerca de 35 milhões de dólares e arrecadou cerca de 11 milhões. Ou seja, um grande fracasso de bilheteria. A rejeição do público não é pela incompreensão dos easter eggs espalhados pelo longa-metragem, como supôs Aster. É porque o roteiro não consegue sustentar a história de Beau para além dos primeiros quinze ou vinte minutos. Sua jornada começa e se desenvolve e acaba nesses primeiros momentos de projeção. O restante é um amontoado de situações bizarras e simbolismos que escalam de grau e velocidade sem permitir tempos de respiro para o espectador. Aster teve uma sequencia de êxitos na carreira. Hereditário (2018) teve um orçamento de 10 milhões de dólares e faturou cerca de 80 milhões em bilheteria. Midsommar (2019) foi produzido com 9 milhões e arrecadou quase 50 milhões. São filmes com bons números e causaram boa impressão entre os críticos. Não houve o mesmo entusiasmo com o longa-metragem de 2023.

Um homem solitário se prepara para visitar a mãe. Ele não quer fazer a viagem, mas se obriga. Beau tem uma forma muito particular de ver o mundo lá fora. Às vezes ela limita suas ações, principalmente neste momento de retorno à Mãe. O psiquiatra receita uma nova medicação. Chega o dia da viagem e Beau está pronto. No entanto, lhe roubam as chaves da porta de casa e a mala quando ele está saindo para o aeroporto. E agora? Ele pega o avião ou chama um chaveiro? Até este ponto do filme o espectador pode supor estar diante de uma história sobre as fantasias de um homem fóbico versus a realidade do mundo exterior. Essa impressão acaba se desmanchando completamente.

Destrinchar a estrutura do pensamento paranoico é uma coisa inegavelmente bem feita no roteiro. Beau tem algum problema com a mãe e seu pai parece ter morrido durante o ato sexual no qual ele foi gestado. A mãe conta a Beau que seu pai tinha uma condição de saúde na qual era proibido experimentar um orgasmo. E ele herdou a doença paterna. Não pode ter relações sexuais. São cenas importantes sobre a origem das suas fobias. No entanto, é impossível saber se isto é um fato de sua biografia ou se é imaginação. O início do filme deixa claro a incapacidade de Beau de contrariar a Mãe. Em sua mente, ela exerce um controle quase absoluto sobre sua vida, uma autocracia materna. Ela tem acesso até ao que Beau e seu psiquiatra conversam no consultório. O personagem foi castrado pela morte do pai e pela autoridade que ele criou para a mãe. Uma castração a barrar o gozo de mundo. Tudo fora da porta de casa é maléfico. Tudo lá fora o destruirá. O exterior é um orgasmo a ser evitado. A Mãe é a materialização do seu superego, a acusadora, a julgadora, a que pune.

Beau, enquanto sujeito paranoico, constrói para si um cotidiano permeado de hipóteses absurdas para cada uma de suas ações mais banais do cotidiano. É o absurdo que estrutura seu pensamento e opera a partir de uma leitura de mundo que não faz distinção entre o que é imaginação e o que é fato. Ele se organiza a partir dessas suas criações mentais. As experiências traumáticas infantis parece ser o substrato no qual se originam estas hipóteses fantasiosas sobre o mundo lá fora. As ruas estão cheias de corpos. Há um esfaqueador solto na cidade. Os moradores de rua e os delinquentes podem invadir sua casa. O psiquiatra pode gravar suas conversas. Seu pai pode ser um pênis monstruoso e gigantesco escondido no porão. Este último ponto é bastante interessante. O seu próprio pênis é um monstro, apto para o prazer, mas proibido ao toque. Já o pênis no porão simboliza um pai essencialmente fálico que aterrorizou a mãe. Ela o mostra para explicar sua origem. Esse homem foi só um pênis monstruoso agora vivendo escondido num porão. Isto é, Beau foi fruto de uma violência sexual que a mãe tenta afastar para os longínquos da memória.

Ari Aster não se preocupa com realidades que não sejam aquelas derivadas do pensamento paranoico do protagonista para narrar as agruras do personagem. As cenas sempre ficam sempre presas à perspectiva de Beau. É um filme em primeira e nenhum narrador em primeira pessoa é confiável. Então é impossível distinguir as fantasias da realidade. Os seus efeitos são reais e é isso que importa na trama. Mas as tantas aventuras pelas quais Beau passa em seu épico de paranóias não são capazes de gerar uma boa história. É metafórico demais. Uma coleção de simbolismos. Sobram peças do retrato psíquico e faltam elementos básicos de construção do personagem. Ele é apenas um homem paranoico. Qual é a sua profissão? Ele tem alguma? Com o que trabalha? Quem o sustenta? Não é possível afirmar que Beau se encontra com a mãe no ato final. Aquilo é fantasia ou realidade? A história parece girar toda em torno do encontro real que se desenvolveu e acabou lá no primeiro ato. O roteiro aposta no detalhamento da experiência do pensamento paranoico sem um enredo que ofereça sentido para além das entrelinhas. É um filme de subcamadas que pode ser um ótimo material para estudantes de psicanálise, já como um entretenimento de três horas de duração não vale a pena.



Beau Tem Medo

Título original:
Beau Is Afraid
Duração: 2h 59min
Direção e roteiro: Ari Aster
Elenco principal: Joaquin Phoenix, Patti LuPone e Parkey Rose
Origem: EUA




24/12/2023

Saltburn

Eduardo Barbosa ▪ 24 dez 2023



Uma mistura de Carrie, a estranha (2002) com Verão 85 (2020) e Bela vingança (2020). É mais ou menos essa salada que Emerald Fennel faz em Saltburn. O roteiro é todo bem alinhavado, resultando em uma história bem contada. Mas Fennel não entrega tudo de bandeja para o espectador. Há espaço para interpretações variadas. É uma trama de inveja ou de uma paixão doentia? Pode ser uma coisa ou outra. Ou ambas. Depende do ponto de vista do espectador.

Oliver Quick (Barry Keoghan) é um garoto aparentemente pobre chegando em uma universidade com estudantes de classe alta saindo pelo ladrão. O início da história bebe da mesma fonte de uma centena de outros filmes sobre hostilidades em ambientes escolares. Há dois grupos de alunos. Os populares, festivos e descolados. E os excluídos. Oliver não tem roupas de grife, nem uma postura descolada, logo pertence ao grupo dos excluídos. Enquanto tenta fazer amizade dentro desse seu novo círculo social, um rapaz do outro grupo lhe chama a atenção. É Felix Catton, um super-rico interpretado por Jacob Elodi. Oliver faz um favor para Felix a certa altura da história e ascende dos marginalizados para os descolados quando os dois se tornam amigos. A amizade entre os dois aumenta até Felix convidá-lo para passar as férias em sua mansão, a luxuosa Saltburn. Mas a proximidade com a família Catton coloca a amizade em xeque quando os segredos de Oliver começam a surgir.

É mais uma daquelas histórias sobre super-ricos se dando mal. Já foram feitas dezenas delas, como O menu (2022), Triângulo da tristeza (2022), Glass ônion (2022), Parasita (2019). O interessante no filme de Emerald Fennel é que a história é feita para se torcer contra os personagens ricos mesmo diante das revelações sobre o caráter e a condição social de Oliver. Há uma série de pontos de virada depois do segundo ato. A imagem inicial do protagonista vai se desmanchando a conta gotas. Oliver é mesmo um garoto pobre? E Felix, é um cara simpático ou um boy-lixo tão esnobe quanto sua mãe? O ato final leva a crer que a história de Oliver Quick conta sobre uma vingança. Como foi com Cassie (Carey Mulligan) em Bela vingança (2020). O próprio Oliver diz em uma cena ou outra no começo e ao final do filme que nunca esteve apaixonado por Felix. Era ódio. Mas o roteiro deixa inúmeras pistas ao longo do caminho para o espectador tirar as próprias conclusões. A cena da banheira sendo lambida. O ato sexual na terra molhada. Um ódio bem questionável.

A atuação de Barry Keoghan é das melhores. O ator transita muito bem entre o mocinho marginalizado do ambiente escolar no primeiro ato do filme e o manipulador de Saltburn no ato final. Mas não é um papel singular da carreira de Keoghan. Seu curriculum tem um histórico de personagens semelhantes. Já fez uma figura estranha em O sacrifício do cervo sagrado (2017). Depois continuou com um personagem diferentão em The banshees of Insherin (2023). É quase a sua zona de conforto. Ou, analisando por outra perspectiva, é o lugar que Hollywood lhe destina por não ter a beleza padrão de um jovem ator em ascensão, como o coadjuvante Jacob Elordi com quem divide a tela no filme de Fennel. A estranha beleza de Keoghan só pode ser utilizada para construir personagens excêntricos.

Alguns personagens são bastante caricatos, como o estudante interpretado por Ewan Mitchel que aparece no primeiro ato, e o mordomo Duncan, do Paul Rhys. Carey Mulligan saiu do papel principal em Bela vingança (2020), também dirigido e escrito por Fennel, para surgir em Saltburn como um petisco rápido em um elenco no qual o prato principal é composto por Kheogan e Elordi e Pike. Apesar de uma caricatura aqui e outra ali é impossível não se divertir com as conversas e os jantares na mansão.

Em termos artísticos, Saltburn é um filme excelente. Os personagens são bem construídos. A trama funciona. Mas é um filme tão cínico quanto filmes de orçamento milionário sobre personagens em situação de extrema vulnerabilidade social. O cinema é uma indústria. E indústrias fabricam produtos para extrair lucro. Mascarar um produto como crítica social é uma ótima estratégia de mercado. Quantos bairros populares poderiam ser construídos com um orçamento de milhões de dólares de um filme considerado "crítica social"? O vencedor do Oscar de melhor filme de 2020, por exemplo, custou cerca de 11 milhões de dólares para ser produzido. Quantas famílias como aquelas retratadas no filme, em situação de fome e falta de moradia, teriam condições mais dignas de vida com esse montante aplicado em políticas públicas de assistência às classes baixas? Por isso a tal "crítica social" dessas obras soa cínica. Saltburn segue uma linha parecida. Mas não porque o protagonista é um personagem  miserável construído com uma soma milionária se insurgindo contra as classes altas. É cínico porque a elite do cinema holiwoodyano vive encastelada em suas Saltburns particulares em Los Angeles ou outras metrópoles com suas máscaras de vidas perfeitas e seus esnobismos, exatamente como Elsbeth Catton, interpretada pela Rosamund Pike. A história de Oliver Quick não é uma crítica social. É a piada de uma classe social sobre si mesma e como entretenimento funciona muito bem.




Saltburn

Ano: 2023
Duração: 2h 11min. 
Direção e roteiro: Emerald Fennell
Elenco principal: Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Granton, Alison Oliver e Carey Mulligan
Origem: Reino Unido 




23/12/2023

O Mundo Depois De Nós

Eduardo Barbosa ▪ 23 dez 2023

O avanço tecnológico e suas consequências para a humanidade é um tema recorrente no cinema. Na ficção científica a inteligência artificial é um ingrediente quase indispensável. O que seria de Westworld (1973), The terminator (1984) e The Matrix (1999), sem seus ciborgues inteligentes e suas máquinas dotadas de consciência? A neurose humana sobre a tomada de consciência das máquinas sempre aparece em novas safras de filmes. As tecnologias cibernéticas enquanto antagonistas podem aparecer em sua forma clássica, como em Missão impossível 7 (2023). Ou em um formato menos óbvio e menos corporizado como em Leave the world behind (2023).

Trabalhar com um vilão sem corpo e sem materialidade é mais comum no cinema-catástrofe. É o caso das forças antagonistas de Birdbox (2019), The Happening (2008) ou mesmo Ruído branco (2022). A ausência do corpo de um vilão é um elemento que, se bem trabalhado, pode gerar um suspense em alta voltagem. Sam Smail prova seu saber na utilização desse recurso construindo vários níveis de tensão enquanto se espera por explicações sobre vilões.

Amanda, uma publicitária de classe média, resolve alugar uma casa de férias fora da cidade onde mora para passar uns dias com seu marido e os filhos. Tudo corre bem. Eles aproveitam a casa, se divertem na piscina, descansam na praia. Até que coisas incomuns começam a acontecer. Um petroleiro invade a praia. Cervos invadem o jardim da casa. O sinal de internet e a televisão não funcionam. E dois estranhos chegam no meio da noite afirmando que a casa é deles e há uma pane de energia lá fora. Amanda não acredita neles e não é possível checar as informações que trazem, pois os celulares não funcionam.

Os estranhos são interpretados por Mahershala Ali e My'Hala Herrold. Um pai e uma filha, negros. Julia Roberts e Ethan Hawke são os pais de uma família branca. Um conflito racial se instala aos pouco entre eles. Amanda diz ao marido que eles não tem cara de donos daquela casa. Em outro momento supõe que o cabelo afro da moça negra é um empecilho no uso da piscina. Amanda pratica um racismo velado. A chegada de dois negros torna aparente não apenas o racismo das classes médias brancas dos Estados Unidos, mas também um certo machismo de quem elaborou o roteiro. Amanda logo entra em conflito com a recém-chegada Ruth e a moça é tão irritadiça quanto ela. Já os dois homens dialogam pacificamente e dividem bebidas. As mulheres são belicosas e neuróticas. Já os homens são todos racionais e equilibrados e mesmo em situações de nervos à flor da pele eles conseguem sentar e conversar. O filme escancara propositalmente questões de raça e deixa vazar de forma não intencional questões de gênero.

As tomadas aéreas permeiam o filme do começo ao fim. Dá uma sensação de que alguma ameaça paira no ar. E esse perigo está à espreita, prestes a cair sobre os protagonistas ou sobre o mundo. Os ambientes são vistos do alto, bosques, jardim, o interior da casa e o planeta. Este último enquadramento é outro ponto curioso. Ele leva o espectador a acreditar na iminência de uma tragédia global. Mas quando retorna ao nível terrestre é sempre um retorno ao ambiente dos personagens. É como se o planeta fosse os Estados Unidos. Um complexo de colonizador das potências politico-econômicas que se colocam como o centro do mundo.

A ameaça nunca se corporifica. Os personagens e o espectador não sabem de onde os ataques partiram e nem qual é o objetivo de quem está por trás das ações. Há apenas especulações. Talvez seja o Iraque, ou a China, ou uma aliança de vários inimigos dos Estados Unidos. Enquanto se especula, aviões caem, carros com direção autônoma se lançam como kamicases em acidentes rodoviários e ataques supersônicos chegam  de hora em hora. Não é a toa que as especulações apontem para os países não-ocidentais. Os Estados Unidos vivem uma guerra tecnológica com a China há anos. O governo Biden restringiu na primeira década de 20 deste século a venda de chips de computação avançados para o país asiático, alegando questões de segurança nacional. O que está em jogo, na verdade, é a posição de poder na qual os Estados Unidos se agarram desde a segunda grande guerra. É a perda do posto de maior potência econômico-militar que os aflige o tempo todo. É esse temor do avanço tecnológico oriental e um consequente domínio sobre o ocidente que sustenta a história de Leave the world behind. Por isso não importa muito exibir a fonte dos ataques. Podem ser os russos, os chineses, a Coreia do Norte, o Irã, Cuba. Tanto faz. Qualquer um deles serve. A tecnologia tão temível na ficção científica de Hollywood, vale lembrar, é produzida dentro dos Estados Unidos, da bomba atômica à inteligência artificial. Mas o medo norte-americano nesta história não é das tecnologias bélicas construídas em seus porões. O que os assustam é perder o monopólio da produção e uso dessas ferramentas.

O roteiro não se preocupa com um daqueles fechamentos tradicionais. A história parece ter um final em aberto. Mas também não importa como termina e sim como se chega nesse final. Um dos pontos altos do filme é a obsessão da filha do casal branco pela série Friends (1994 - 2004). O mundo está acabando lá fora e o que ela quer mesmo é ver o último episódio. Talvez seja a personagem mais absurda e mais realista do roteiro. Vivemos no alto desses anos 20 uma crise climática sem precedentes, com enchentes mortais, incêndios, ondas de calor e cavamos a terra cada vez mais fundo em busca de minérios para produzir chips e baterias para alimentar nossas sociedades altamente computadorizadas. Depois escrevemos um roteiro sobre o fim do mundo, filmamos com um elenco cheio de estrelas e uma direção competente. Nos sentamos na frente da tela e assistimos chocados o mundo dos personagens ruir. Torcemos por um final feliz. Acreditar que eles existem é nosso remédio cotidiano, como faz Rose. Você não se sente ótimo quando Neo finalmente derrota a Matrix? Rose se sente ótima ao se anestesiar com Friends. De anestesia em anestesia vamos tocando a vida, fechados em nossos bunkers de entretenimento, lutando junto de Amandas e Neos, enquanto desmorona o mundo lá fora.




O Mundo Depois De Nós

Título original: Leave The Word Behind
Ano: 2023
Duração: 2h e 21min.
Direção e roteiro: Sam Smail
Elenco principal: Julia Roberts, Ethan Hawke, Mahershala Ali e My'Hala Herrold
Origem: EUA




17/12/2023

Na Ponta Dos Dedos (2023): o estranho familiar no sacrifício das unhas

Eduardo Barbosa ▪ 17 dez 2023


O grego Christos Nikou é um contador de histórias peculiares. O trabalho do diretor no cinema de ficção assume um caráter singular desde seu curta-metragem KM (2012). Neste drama de pouco mais de dez minutos Nikou embrulha a história de um casal em crise em refinadas camadas de metáforas que inundam o espectador com múltiplas possibilidades de interpretação. Em Apples (2020), seu primeiro longa-metragem de ficção, Nikou narra um processo de luto com criatividade em alto nível. Após um surto coletivo de amnésia, um homem se vê perdido e refugiado no apagamento de seu próprio passado. Tudo que lhe restou foi o gosto por sua fruta preferida, maçãs. O homem entra em um programa de recuperação cheio de tarefas estranhas. Até que as maçãs e o programa trazem seu luto de volta. É um filme lento. Sem sobressaltos. E muito peculiar.

A história de Fingernails (2023) não foge desse padrão do cineasta. Neste longa-metragem ele continua explorando um objeto comum aos dois trabalhos anteriores, as relações amorosas. Em KM (2012) é um relacionamento em crise. Em Apples (2020) é a perda de uma parceria amorosa. E Fingernails é a busca pelo par perfeito. A ambientação é em uma época anterior aos tempos de vida mediada por tecnologias digitais individuais, como os smartphones. Esta é outra característica de suas obras. Se na época dos aplicativos de encontros amorosos o amor está na ponta dos dedos, no mundo de amores tecnologicamente mediados de Nikou o amor está em um arrancar de unhas. Não existe um Match em uma tela particular. Para obtê-lo é preciso que o casal de futuros companheiros arranque uma de suas unhas das mãos e as submeta a um exame laboratorial. O teste realizado por uma máquina diz em minutos se existe compatibilidade amorosa ou não. Assim como em Apples (2020), no filme de 2023 também há um programa que ajuda os candidatos na criação de vínculos afetivos. Quanto mais radical as atividades mais chance do teste dar positivo. O amor de Fingernails é biossocial, unhas e convívio.

Na história, Anna (Jessie Buckley) está casada com Ryan (Jeremy Allen White). Mas algo entre eles não corre como ela gostaria. Embora o teste de compatibilidade entre eles tenha sido  de 100% ela hesita. Será que o exame foi um falso positivo? Pois a função dos testes é impedir que as pessoas iniciem relacionamentos efêmeros a culminar em divórcios. Anna acha que alguma coisa está errada. Ela consegue uma vaga de emprego em uma empresa que faz os testes amorosos. Se aproxima de Amir (Riz Ahmed) por quem se apaixona. O problema é que não existe compatibilidade com mais de uma pessoa. O amor de laboratório é sempre único. Anna decide refazer seu teste com Ryan na esperança de que a máquina errou e ela se casou com o homem errado.

Apesar de esquisito o universo do filme soa bastante familiar. A proposta de Nikou é questionar as relações amorosas que construímos com a mediação dos aparatos tecnológicos. O filme leva a ideia de gastar os dedos em busca de um match ao extremo. Pois é um gastar a ponta dos dedos numa tela de celular que o processo de procura de uma parceria amorosa por aplicativo exige. Fingernails extrapola isso ao mostrar um mundo no qual um pedaço inteiro do corpo é exigido em troca de um match. Tão estranho, tão familiar.

A abordagem, embora seja singular e torne o filme interessante, acaba derrapando em um clichê do gênero romântico quando se encaminha para o final. O ponto de virada que explica as mentiras de um dos personagens centrais é utilizada exaustivamente em comédias românticas. O recurso, para quem conhece os trabalhos anteriores de Christos Nikou, diminui parte do encantamento com suas abordagens excêntricas de temas explorados abundantemente, e sempre com a mesma fórmula, na história do cinema.

Mesmo derrapando no ato final e caindo nos clichês românticos, como o batido "com quem a mocinha ficará?", o filme não deixa de ser provocativo. As últimas cenas dizem que a ciência até pode produzir conhecimento sobre o amor e informar tudo sobre a parceria certa para cada pessoa. Mas conhecimento, nesse caso, não produz felicidade. A protagonista é feliz nas incertezas. É a hipótese de amor que empolga, não a sua confirmação.




Na Ponta Dos Dedos

Título original: Fingernails
Ano: 2023
Duração: 1h 52 min.
Direção: Christos Nikou
Roteiro: Christos Nikou, Sam Steiner, Stvros Raptis
Elenco principal: Jessie Buckey, Riz Ahmed, Jeremy Allen White e Luke Wilson.
Origem: EUA