11/10/2024

A introjeção do descarte feminino em A substância (2024)

A mulher enquanto um ícone de beleza no mercado do entretenimento tem prazo de validade para algumas sociedades ocidentais contemporâneas. Quanto mais avança em idade, mais descartável se torna. O filme de Coralie Fargeat escancara esse processo de descarte ao contar a história de uma mulher demitida de um programa de televisão por ser velha. O corpo envelhecido na tela não captura a turba de espectadores sedentos por beleza juvenil. Mas esse anseio das massas é criado pela própria indústria cultural. Tais culturas constroem determinados padrões de beleza a partir de seu cinema, revistas de moda, programas televisivos etc. Há uma circulação massiva desse modelo. Os indivíduos o consomem e introjetam-no. Por exemplo, se a mulher na capa de uma revista feminina reputada como referência de beleza é magra e jovem, a leitora gorda e velha não pode ser considerada bonita. Esse molde sempre presente nos produtos de entretenimento orienta um ideal específico de beleza a ser conquistado pelos consumidores. Esta é a questão principal de A substância.

Elizabeth Sparkley (Demi Moore) ouve por acaso uma conversa na qual seu chefe (Dennis Quaid) menciona sua demissão, pois é uma velha e eles precisam de uma mulher atraente, jovem. Não importa a estrela na calçada da fama e a popularidade de Lizzie. Para homens como ele nada disso interessa. Importa é o corpo feminino e juvenil na tela. Vende mais. Ela materializa a forma pela qual ocorre uma introjeção e ele é um agente operando diretamente os mecanismos dessa forma de organização da vida em sociedade.

As cenas de Harvey têm um tipo particular de construção. A montagem é feita com muitos cortes como se houvesse uma urgência dentro do personagem, uma corrida enlouquecida por um novo produto. Carne nova. Os enquadramentos lotam-se de planos-detalhes nos quais o espectador vê de perto os alimentos triturados no interior da boca por dentes vorazes. É um recurso recorrente no fazer cinematográfico de Fargeat. também pode ser visto em A vingança (2017), filme a retratar a retaliação sangrenta de uma mulher vítima de violência cometida pelo seu próprio amante. Tais enquadramentos constroem esse tipo de homem como um inseto a preparar ataques e devorar suas presas.

O nome Harvey não é uma escolha ao acaso. Em 2017 um produtor de cinema com esse mesmo nome foi denunciado por crimes sexuais contra atrizes e outras trabalhadoras do cinema. A revolta com o caso popularizou o movimento MeToo nascido em 2006 e forneceu combustível para a luta contra a naturalização do assédio sexual dentro dessa indústria. Em 2020 o produtor foi condenado e preso. Mais de oitenta mulheres o denunciaram publicamente. Era um predador a ditar as regras de funcionamento do mercado.

Elizabeth ganha um presente de Harvey ao ser demitida. Um livro de culinária francesa. Este é o esperado de uma mulher com mais de sessenta anos. Ela deve ser uma boa cozinheira. A autêntica vovó a cozinhar e tricotar. Não há mais um corpo juvenil para o banquete dos olhos. Mas a mulher deve ser sempre servil. Então ela deve compensar esta falta seduzindo paladares. Os olhos perdem, a boca ganha. É o ideal de mulher para homens como Harvey.

Inconformada, Elizabeth conhece uma nova tecnologia de replicação humana, a substância. Com ela o usuário obtém uma “versão melhor de si mesma”, jovem e magra. Isto é, devolve o capital estético exigido para pertencer ao panteão das efêmeras lindas e gostosas. O uso da substância marca o ponto no qual se iniciam as cenas de horror corporal. Um clone lhe rasga as costas em um parto vertebral. 

A nova versão se torna Sue (Margareth Qualley). Mas elas não podem conviver no mesmo tempo e espaço. Enquanto Elizabeth hiberna, Sue reorganiza a vida. Participa da seleção para o programa de televisão de Harvey. É contratada. Faz sucesso. Tem todas as características demandadas por aquela cultura para ser uma mulher bonita e “amada”. As câmeras exploram o corpo de Sue como faz o olhar masculino. A boca, os quadris, o busto e as nádegas são exibidos na tela para alimentar a avidez do público. Como cortes bovinos em uma gôndola de açougue. São cenas incômodas. Tudo sexualizado ao extremo. Enquanto isso, Elizabeth seca até os ossos em um canto escuro de sua casa para oferecer aquela beleza erotizada ao público. O pior da condição feminina não é envelhecer, é ser objeto. Fargeat não doura a pílula com metáforas. Ela mostra a indústria do entretenimento como uma besta carnívora a se alimentar do corpo das mulheres.

A proposta do longa-metragem deixa às claras como é feito o uso e o descarte das mulheres em sociedades a objetificá-las. Nestas o homem não tem idade para estar diante das câmeras. Torna-se até charmoso após os cinquenta anos! A velhice também lhe confere confiabilidade. Coralie Fargeat vai direto ao ponto. A fera a destroçar a autoestima das mulheres com mais de sessenta anos não é a velhice. É o patriarcado. Homens como Harvey são seus principais agentes.

A cena na qual Elizabeth se prepara para um encontro amoroso é uma evidência suficiente a provar a introjeção do seu próprio descarte. Não suporta a falta de colágeno no rosto e as rugas e a flacidez. Ignora a beleza de sua velhice por não ser a mercadoria valorizada pelo mercado. Logo, se fecha para uma possível experiência amorosa com um pretendente a esperá-la para um jantar.

Sue viola os protocolos de uso da substância e toma mais tempo para si. E quanto mais se rende aos anseios de Harvey, mais o corpo de Elizabeth apodrece. Precisa se livrar de sua antiga versão. Não é possível ser amada sendo uma velha. Esse comportamento não se origina de uma psique independente da réplica. Todo sujeito é formado por uma soma de condições particulares e sociais. A jovem antagonista é a cultura do universo da protagonista em estado bruto. Os sujeitos incorporam esses modos coletivos de organização da vida em sociedade e os naturaliza. Torna-se uma parte do eu. A partir dessa configuração, tais estruturas parecem ter vida própria. Sue, portanto, é parte da psique de sua vítima.

Coralie Fargeat construiu um roteiro preciso. A protagonista vê seu mundo perfeito se desmoronar ao ser demitida da televisão. Se depara com um chamado à aventura ao encontrar a substância. Hesita. Mas aceita o chamado. Surge um novo mundo no qual tudo parece melhor em relação ao anterior. Mas eis os vilões à vista: o implacável desejo do Outro. O novo desmoronamento é maior. Ela torna-se sua própria antagonista. Não há retorno para o ponto inicial. Tudo se complica e todas as decisões a levam para mais perto de um abismo.

A substância é um suspense de tirar o fôlego. As cenas de Sue se alimentando de um corpo apodrecido são nauseantes. A trilha musical composta por Raffertie constrói uma atmosfera perene de tensão. O clima de apreensão paira sobre o espectador do primeiro ao último ato. A música parece prenunciar a iminência de algum evento aterrorizante. Pequenos dramas se sucedem e se avolumam. O desfecho é de fazer inveja em qualquer Quentin Tarantino. Litros de sangue regam a tela ao som agressivo de Raffertie.


Eduardo Barbosa ▪ 11 out 2024

___________________________


A SUBSTÂNCIA

Título original: The substance
Ano: 2024
Duração: 2h 20min.
Direção: Coralie Fargeat
Roteiro: Coralie Fargeat
Elenco principal: Demi Moore, Margareth Qualley e Dennis Quaid
Origem: Estados Unidos, Reino Unido
___________________________