Eduardo Barbosa ▪ 22 set 2023
Há diretores que trabalham com filmes de gênero utilizando fórmulas prontas, amplamente utilizadas, e produzem bons filmes. E há os diretores que fazem o mesmo tipo de filme manejando as fórmulas de gênero de forma mais autoral. Ao espectador, nesse segundo caso, o que se oferece como resultado final não é apenas mais um bom filme deste ou daquele gênero, é a singularidade da obra. São muitos os exemplos em relação ao western: Sergio Leone e seus planos detalhes com as trilhas-personagens de Enio Morricone na trilogia dos dólares: Fistful Of Dollars (1964), For a Few Dollars More (1965), The Good, The Bad And the Ugly (1966); Quentin Tarantino e a violência orgasmática de The Hateful Eight (2015). Jane Campion, a ausência de armas e a violência psicológica em The Power Of The Dog (2021). E Almodóvar com sua paleta de cores berrantes em punho para construir os personagens de Estranha Forma de Vida (2023).
O filme começa apresentando uma fado português de Amália Rodrigues interpretado por Caetano Veloso. A letra é sobre alguém questionando paixões dolorosas e impossíveis. Almodóvar não escolheu por acaso a música intitulante do filme. O timbreado feminino da voz de Caetano na abertura anuncia ao espectador que dessa vez os homens falarão de afetos no Velho Oeste. O lugar de sofrimento explícito por amor no western sempre foi feminino. As mulheres sofrem, falam e choram. Os homens competem entre si, duelam, atiram, e diante de um amor que dói vão embora de olhos secos e gatilhos sempre lubrificados, como em Shane (1953) de Georges Stevens. Por isso se faz necessário a voz de um homem para abrir a história. É preciso desrecalcar o sofrimento masculino no canto de abertura.
O enredo parece simples no incício. Um ex-pistoleiro de aluguel retorna do México para uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos para rever seu antigo companheiro de trabalho. Descobrimos com o reencontro que eles tiveram um caso, mas se separaram e seguiram caminhos distintos. Um deles virou xerife. O outro tornou-se rancheiro. Como nos trabalhos anteriores de Almodóvar o drama vai se encorpando a cada virada de ato, mas neste trabalho também ganha musculosidade uma carga erótica a cada nova cena com os dois protagonistas, Jake (Ethan Hawke) e Silva (Pedro Pascal). A carga de desejo represado pulsa nos mínimos detalhes. De um jeito requintado, a tela pulsa com um tesão contido entre os dois, mas irrefreável. Toda essa primeira apresentação faz pensar que é só mais uma história de amor impossível. Silva diz que retornou apenas para rever Jake, após décadas de distanciamento, não para ver um filho que vive nos arredores da cidade. Jake, às voltas com a resolução de um assassinato na cidade, desconfia de Silva, o espectador também. Ele já tem as pistas necessárias que levam ao assassino. É um homem manco. O filho de Jake é manco. O que se desenha com essa revelação é um problema que Jake e o espectador precisam resolver. Silva retornou por amor ou para defender o filho?
A partir disso a trama se encorpa. Todos os elementos de um western clássico jorram da tela. O forasteiro recém-chegado a desestabilizar a ordem local. As perseguições a cavalo. O bandido que não hesita em sacar o revólver. O confronto final com um duelo. Até as roupas do mocinho, escuras, segue o padrão clássico. No entanto, as cores de Almodóvar estão longe de representar apenas uma construção maniqueísta simples de personagens, como na composição do cowboy androide de Westworld (1973) de Michael Crichton, por exemplo.
O figurino, criado pelas mãos do diretor criativo da Ives Saint Laurent, Anthony Vaccarello, ajuda a dar profundidade aos personagens. Jake usa um terno escuro sobre camisa azul ou branca. Os tons azuis demostram a frieza em relação aos sentimentos de Silva e os tons escuros representam o isolamento, o afastamento em relação ao amante e à própria sexualidade. Isso fica evidente na cena em que os dois estão jantando e uma parte minúscula de vermelho surge por baixo do paletó escuro de Jake. O vermelho berrante ali é um pedaço de desejo gritando e vazando por baixo da repressão. A toalha da mesa de jantar também é um xadrez em vermelho e branco, são pitadas de desejo se colocando entre eles. Quando os dois vão para o quarto, o xerife se despe do terno escuro e deixa ver a terceira peça, um colete vermelho vivo, cor que também está na cama, desejo em estado bruto, intensidade de sentimentos.
Silva é construído com uma paleta de cores oposta ao amante, tem um guarda-roupas e um jogo de cama coloridos com verde, amarelo, vermelho e tons terrosos. É um personagem carregado de esperanças tanto em relação ao xerife quanto ao filho. Por isso sua primeira aparição é com uma jaqueta verde ao som de um fado sofrido enquanto cavalga ao encontro dos homens que ama. Esse verde também é referência ao seu ofício de homem da terra, ligado a natureza, assim como o marrom. O amarelo tem tudo a ver com a sensualidade desse mexicano fogoso a seduzir o homem da lei.
Apesar da construção cuidadosa dos personagens e seus figurinos, dos cenários, dos planos, Almodóvar derrapa no roteiro com o desenho de Silva. O norte-americano Jake é sóbrio e apesar de seu passado de pistoleiro de aluguel se redimiu e tornou-se um homem respeitado. O latino Silva é pai de um assassino. Sua casa produz bandido. E ele é fogoso. Esta é uma ideia corrente entre os países ditos desenvolvidos sobre os "exóticos" habitantes da América Latina. Na maioria das vezes eles são representados no cinema como bandidos, sexualizados ao extremo, traficantes de drogas: perigosos sedutores ou perigosos criminosos. Também há um ou outro diálogo ruim em cenas nas quais o personagem de Pascal fala sobre seu amor por Jake, soa piegas ao extremo e juvenil demais para um homem maduro.
No entanto, mesmo derrapando aqui e ali, Estranha Forma de Vida é como um velho e bom conto de faroeste de revista literária. Cumpre os requisitos do gênero e inova para dialogar com maneiras contemporâneas de pensar as relações humanas acerca de afetividade entre pessoas do mesmo sexo. O final após trinta minutos pode soar estranho para quem está acostumado apenas com longa-metragens em suas sessões de cinema. Mas para um curta-metragem é o suficiente. A história bem contada, as atuações convincentes do elenco e a estética almodovariana arrojada e lapidada pela Saint Laurent é o que pode deixar o espectador com uma vontade de ver mais sobre a dupla de protagonistas. Em parte, Almodóvar satisfaz esse anseio na entrevista ao final do filme, contando como seria se a história continuasse.
É uma daquelas histórias que permanecem ecoando na cabeça do espectador mesmo após os créditos finais.
Estranha forma de vida
Título original: Strange Way Of Life
Ano: 2023
Duração: 31 min.
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar.
Elenco principal: Ethan Hawke, Pedro Pascal, George Steane, Jason Fernández, José Condessa.
Origem: Espanha