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19/03/2024

Andrew Haigh utiliza mortos e metáforas em Todos Nós Desconhecidos para falar sobre a solidão gay

O diretor embala a história de Adam e Harry com uma camada de realismo fantástico na qual os mortos povoam o cotidiano do protagonista. É um recurso pouco visto em filmes sobre o amor entre dois homens.  O resultado é um conto tocante sobre as rejeições e opressões contra a criança queer e a solidão vividas por homens gays.

Eduardo Barbosa ▪ 19 mar 2024


A
dam (Andrew Scott) é um roteirista que vive em Londres e mora em um grande prédio de apartamentos quase vazio. Um dia o alarme de incêndio dispara. Ele sai pelos corredores desertos, desce para a rua e avista da calçada seu único vizinho no edifício. É Harry (Paul Mescal), que logo depois bate em sua porta com uma garrafa de bebida na mão e uma ideia erótica na cabeça. Adam não aceita nem uma coisa nem outra. Dispensa o rapaz sem hesitação. Mais tarde, Adam descobre que a intenção de Harry ia muito além de uma bebida ou de sexo casual. Ele só não suportava mais sua solidão.

A câmera está sempre a enquadrar o gigante prédio vazio. Metáfora para um mundo solitário habitado por dois homens que se atraem, mas um deles está apegado demais ao sentimento de rejeição para ser acolhido e acolher alguém. Sentir peso na solidão não é incomum dentro do recorte populacional do qual Adam faz parte. De acordo com um estudo do Williams Institute da Universidade da Califórnia, 60% dos idosos gays sentem falta de companhia e 50% se sentem isolados. Embora os dois personagens do filme não sejam idosos, eles também experimentam essa sensação de isolamento e solidão. E ambos procuram formas distintas de atenuar o sofrimento advindo dessas percepções. A trama de Andrew Heigh destrincha os dois lados do manejo da solidão gay. De um lado temos Harry às voltas com as dores de sua solidão insuportável e do outro há Adam e seu retorno aos pais.

O protagonista está escrevendo um novo roteiro quando os reencontra. A mãe quer saber sobre sua vida, se tem namorada, se é bem sucedido no trabalho. Ele conta que é gay e a mãe não tem uma boa reação, tinha certeza sobre sua heterossexualidade, "ele nem parecia homossexual", diz ter ouvido que esta vida é muito solitária. Ele nega, sem muita convicção. Em outra das visitas há uma conversa sobre sexualidade entre ele e o pai. Adam  o questiona se sabia de sua orientação sexual. O pai sabia desde muito cedo e pergunta se era difícil com os colegas de escola. O filho narra todas as violências sofridas por ser um menino gay e pergunta por que o pai nunca entrou no quarto para saber porque sempre chorava na volta do colégio. O pai responde que era melhor não conhecer as causas do choro. Não havia o que fazer a não ser ignorar. Se fosse um dos colegas da escola, também faria com Adam o mesmo que aquelas crianças faziam.

Adam cresceu com uma rejeição dupla, dentro e fora da família. A mãe se apegava em sua imagem ideal de filho heterossexual e cegava-se para a realidade. O pai sabia, mas silenciava-se. Ambos precisavam se afastar de um lugar de escuta para não acolher os sofrimentos e a diferença do filho. A família de Adam é um braço da sociedade inglesa homofóbica dos anos cinquenta e sessenta. Seu projeto de homem é o grande macho heterossexual. Aquele que desde muito cedo já aprende a agredir o feminino e principalmente se esse feminino estiver em um menino. Essa sociedade e os pais formados por ela não têm interesse em proteger crianças como Adam. Eles querem proteger a heteronormatividade. Então, pouco importa se essa criança queer sofre. O mais importante é reprimir o feminino dos meninos e o masculino das meninas.

Ao tornar-se adulto, Adam ainda ainda carrega em si o menino rejeitado e traumatizado dos tempos de escola. Faz do grande prédio vazio o seu quarto da infância para abrigar seus sofrimentos solitários. Mas as conversas durante o retorno aos pais lhe fazem bem. Há reconciliações, perdões. Ele é acolhido. Essa volta aos traumas vividos com os pais permitem uma viabilidade das vivências amorosas do filho. É na reelaboração das experiências vividas na infância que Adam pode se abrir para o mundo fora do seu gigantesco prédio vazio. Ele olha para os eventos traumáticos não mais como o menino, mas como homem adulto. Isso lhe possibilita ter capacidade de controlar os efeitos dessas vivências. Surge um interesse pelo olhar do vizinho. Os dois se encontram novamente e se acolhem. A mãe e o pai gostam de Harry e estimulam o filho a tocar o romance adiante. O relacionamento é efeito do acolhimento dos pais. Mas o retorno aos pais produz um efeito duplo. Adam se liberta para vivências amorosas, mas se prende à aprovação deles. Um homem desejando manter os laços afetivos com um companheiro e angustiando-se por não saber se seus pais, vivos ou mortos, aceitariam o relacionamento.

De modo geral, Todos Nós Desconhecidos é como uma mistura de O sexto Sentido (1999) com o livro Pedro Páramo, de Juan Rulfo. No longa dirigido por M. Night Shyamalan o personagem de Bruce Willis é um psicólogo ajudando o menino Cole Sear a lidar com as pessoas mortas com as quais convive cotidianamente. Já no romance de Rulfo o protagonista sai em busca do pai e encontra e conversa com mortos pelo caminho percorrido. Andrew Haigh também lança mão desse tipo de realismo fantástico. Já no primeiro ato o espectador sabe que os pais para quem Adam retorna já morreram há mais de uma década. A dúvida a pairar depois dessa revelação é sobre a realidade de outros personagens, como Harry. Se o protagonista interage com gente morta como se estivessem vivas como saber se ele mesmo e seu companheiro não estão mortos? Mas essa é só uma questão de fundo. Não importa muito se ao seu redor há apenas fantasmas ou se vive de fantasia em fantasia para manejar o peso de sua solidão. A grande questão é qual a função dessa gente morta com as quais Adam se relaciona.

O retorno aos mortos é um ponto muito interessante do filme. Para a psique humana não existem mortos. Porque os efeitos provocados no encontro com o outro gera experiências que se mantêm reverberando em nós enquanto vivemos. Na maioria das vezes é um processo inconsciente. É como se aqueles com os quais nos relacionamos ao longo da vida fossem parte de nós até nosso último fechar de olhos. Até lá, todos que nos geraram alguma vivência significativa, boa ou ruim, continuam vivos em nós. Por isso os integrantes do círculo social de Adam se fazem presentes em sua vida adulta, mesmo mortos há tempos. O efeito desses encontros dura enquanto Adam estiver vivo e ele vai convivendo com seus mortos tal como um Pedro Páramo ou um Cole Sear.

Esse longa-metragem do diretor britânico chega ao cinema em um momento de recrudescimento dos crimes de ódio contra LGBTs+ na Inglaterra. A homofobia era institucionalizada no Reino Unido, do qual a Londres de Adam faz parte, até 1967. Foi nessa época de legislação implacável contra sexualidades dissidentes que Alain Turing (1912-1954), o pai da computação, foi condenado por "indecência grave" em 1952, castrado quimicamente e morto por suicídio por manter um relacionamento amoroso com um homem de 19 anos. Em 2018 o registro desses crimes no país teve um aumento de 28% em relação ao ano anterior, de acordo com a Reuters. Levantamentos da Associação Internacional Europeia  de Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais apontam que os os suicídios aumentaram nos últimos dez anos na Europa. Isso mostra que o problema é global. E aqueles fantasmas de uma Inglaterra violenta contra LGBTs+ pré-anos 60 retornaram. Isso mostra que fantasmas não vivem apenas no nível individual da psique humana. Eles também habitam a consciência coletiva e estão sempre prontos para um retorno a partir de discursos conservadores e extremistas de políticos, religiosos e organizações de direita.

Brasileiros sabem muito bem que estas violências contra homens como Adam e Harry não se restringe apenas ao Reino Unido. No Caso do Brasil, de acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia, 45,89% das vítimas de crime de ódio em 2021 eram homens gays e 44,62% eram travestis e mulheres transexuais. Dessas mortes, 82,91% ocorreram por homicídio e 8,23% foram por suicídio. Em 2022 ocorreu uma morte a cada 34 horas. Dessas vítimas, 52% eram homens gays e 45% eram travestis e mulheres transexuais.  E 67% da totalidade das vítimas tinham entre 19 e 45 anos. Os efeitos dessa violência quando não mata por homicídio resulta em adoecimento mental e suicídio.

São recortes desse cenário de violência, rejeição, adoecimento mental e solidão que Andrew Haigh apresenta na história de Adam e Harry. Todos Nós Desconhecidos é o conto de um homem de meia-idade tentando sobreviver à esse mundo homofóbico muito real fora da tela e abrigando-se em um lugar solitário para manter-se a salvo. Sobrevivência. Mas para muitos homens gays o isolamento não é solução. Não é o remédio. É o veneno. Prepare os lencinhos para o ato final.




Todos Nós Desconhecidos

Título original: All Of Us Strangers
Ano: 2023
Duração: 1h 45min
Direção e roteiro: Andrew Haigh
Elenco principal: Andrew Scott, Paul Mescal, Claire Foy e Jamie Bell
Origem: Reino Unido







24/12/2023

Saltburn

Eduardo Barbosa ▪ 24 dez 2023



Uma mistura de Carrie, a estranha (2002) com Verão 85 (2020) e Bela vingança (2020). É mais ou menos essa salada que Emerald Fennel faz em Saltburn. O roteiro é todo bem alinhavado, resultando em uma história bem contada. Mas Fennel não entrega tudo de bandeja para o espectador. Há espaço para interpretações variadas. É uma trama de inveja ou de uma paixão doentia? Pode ser uma coisa ou outra. Ou ambas. Depende do ponto de vista do espectador.

Oliver Quick (Barry Keoghan) é um garoto aparentemente pobre chegando em uma universidade com estudantes de classe alta saindo pelo ladrão. O início da história bebe da mesma fonte de uma centena de outros filmes sobre hostilidades em ambientes escolares. Há dois grupos de alunos. Os populares, festivos e descolados. E os excluídos. Oliver não tem roupas de grife, nem uma postura descolada, logo pertence ao grupo dos excluídos. Enquanto tenta fazer amizade dentro desse seu novo círculo social, um rapaz do outro grupo lhe chama a atenção. É Felix Catton, um super-rico interpretado por Jacob Elodi. Oliver faz um favor para Felix a certa altura da história e ascende dos marginalizados para os descolados quando os dois se tornam amigos. A amizade entre os dois aumenta até Felix convidá-lo para passar as férias em sua mansão, a luxuosa Saltburn. Mas a proximidade com a família Catton coloca a amizade em xeque quando os segredos de Oliver começam a surgir.

É mais uma daquelas histórias sobre super-ricos se dando mal. Já foram feitas dezenas delas, como O menu (2022), Triângulo da tristeza (2022), Glass ônion (2022), Parasita (2019). O interessante no filme de Emerald Fennel é que a história é feita para se torcer contra os personagens ricos mesmo diante das revelações sobre o caráter e a condição social de Oliver. Há uma série de pontos de virada depois do segundo ato. A imagem inicial do protagonista vai se desmanchando a conta gotas. Oliver é mesmo um garoto pobre? E Felix, é um cara simpático ou um boy-lixo tão esnobe quanto sua mãe? O ato final leva a crer que a história de Oliver Quick conta sobre uma vingança. Como foi com Cassie (Carey Mulligan) em Bela vingança (2020). O próprio Oliver diz em uma cena ou outra no começo e ao final do filme que nunca esteve apaixonado por Felix. Era ódio. Mas o roteiro deixa inúmeras pistas ao longo do caminho para o espectador tirar as próprias conclusões. A cena da banheira sendo lambida. O ato sexual na terra molhada. Um ódio bem questionável.

A atuação de Barry Keoghan é das melhores. O ator transita muito bem entre o mocinho marginalizado do ambiente escolar no primeiro ato do filme e o manipulador de Saltburn no ato final. Mas não é um papel singular da carreira de Keoghan. Seu curriculum tem um histórico de personagens semelhantes. Já fez uma figura estranha em O sacrifício do cervo sagrado (2017). Depois continuou com um personagem diferentão em The banshees of Insherin (2023). É quase a sua zona de conforto. Ou, analisando por outra perspectiva, é o lugar que Hollywood lhe destina por não ter a beleza padrão de um jovem ator em ascensão, como o coadjuvante Jacob Elordi com quem divide a tela no filme de Fennel. A estranha beleza de Keoghan só pode ser utilizada para construir personagens excêntricos.

Alguns personagens são bastante caricatos, como o estudante interpretado por Ewan Mitchel que aparece no primeiro ato, e o mordomo Duncan, do Paul Rhys. Carey Mulligan saiu do papel principal em Bela vingança (2020), também dirigido e escrito por Fennel, para surgir em Saltburn como um petisco rápido em um elenco no qual o prato principal é composto por Kheogan e Elordi e Pike. Apesar de uma caricatura aqui e outra ali é impossível não se divertir com as conversas e os jantares na mansão.

Em termos artísticos, Saltburn é um filme excelente. Os personagens são bem construídos. A trama funciona. Mas é um filme tão cínico quanto filmes de orçamento milionário sobre personagens em situação de extrema vulnerabilidade social. O cinema é uma indústria. E indústrias fabricam produtos para extrair lucro. Mascarar um produto como crítica social é uma ótima estratégia de mercado. Quantos bairros populares poderiam ser construídos com um orçamento de milhões de dólares de um filme considerado "crítica social"? O vencedor do Oscar de melhor filme de 2020, por exemplo, custou cerca de 11 milhões de dólares para ser produzido. Quantas famílias como aquelas retratadas no filme, em situação de fome e falta de moradia, teriam condições mais dignas de vida com esse montante aplicado em políticas públicas de assistência às classes baixas? Por isso a tal "crítica social" dessas obras soa cínica. Saltburn segue uma linha parecida. Mas não porque o protagonista é um personagem  miserável construído com uma soma milionária se insurgindo contra as classes altas. É cínico porque a elite do cinema holiwoodyano vive encastelada em suas Saltburns particulares em Los Angeles ou outras metrópoles com suas máscaras de vidas perfeitas e seus esnobismos, exatamente como Elsbeth Catton, interpretada pela Rosamund Pike. A história de Oliver Quick não é uma crítica social. É a piada de uma classe social sobre si mesma e como entretenimento funciona muito bem.




Saltburn

Ano: 2023
Duração: 2h 11min. 
Direção e roteiro: Emerald Fennell
Elenco principal: Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Granton, Alison Oliver e Carey Mulligan
Origem: Reino Unido 




15/12/2023

Pedágio (2023): o retrato da moralidade e hipocrisia de um Brasil conservador

Eduardo Barbosa ▪ 15 dez 2023


Suellen (Maeve Jenkins) trabalha como cobradora em um pedágio. Divide uma casa com um namorado e com seu filho Tiquinho (Kauan Alvarenga). A relação entre mãe e filho não corre bem. Tiquinho é um garoto gay e gosta de postar vídeos na internet nos quais publiciza sua feminilidade. A mãe policia seu modo de ser e se vestir. Ela quer um filho masculino e normal com roupas e jeito de homem. Ele bloqueou-a em suas redes sociais para evitar confrontos. Mas as amigas de Suellen veem o conteúdo publicado e exibem-no para a mãe. Todas as tentativas de anular a sexualidade do filho se mostram infrutíferas. Até que ela descobre na cidade um pastor evangélico especialista em cura gay. Ela o procura. O valor do tratamento é alto demais e não cabe em seu orçamento. Mas o mundo lá fora, diz ao filho, é cruel demais com gente como ele. Qualquer sacrifício é válido para toná-lo um homem normal.

O roteiro escrito por Carolina Markowicz constrói bons encadeamentos. A solução encontrada por Suellen para curar o filho tem origens nos primeiros borbotes da trama. No primeiro ato do filme ela descobre como o companheiro ganha a vida. Não é por meios legais. Ela o expulsa de casa. No entanto, partindo do princípio de que os fins justificam os meios, ela recorre ao ex-companheiro para conseguir o dinheiro para pagar o tratamento de Tiquinho. Suellen constrói uma nova face para um segundo trabalho no pedágio. Torna-se duplo: legal e ilegal, moral e imoral. Ao mesmo tempo simples cobradora e criminosa operando da janela de sua cabine.

Markowicz já trabalhara com essas questões em seu filme anterior, Carvão (2022). Neste longa-metragem a trama central gira em torno de uma mulher sacrificando a vida do pai acamado por uma boa quantia de dinheiro. As aparências importam muito para os personagens de Carvão. A família deve ter ares de normalidade e perfeição. Diversas subtramas disparam do enredo, incluindo a homossexualidade. Mas este tema não ganha musculosidade na história. Parece que Markowicz quis guardar as cartas na manga para apostar tudo em Pedágio.

O roteiro mergulha mais no incômodo materno em relação ao filho gay do que nas tormentas de Tiquinho lidando com uma mãe homofóbica. Essa abordagem é diferente de outros filmes sobre o mesmo assunto, como o estelar Boy erased (2018), por exemplo. O filme, com Russel Crowe e Nicole Kidman, trabalha mais com as agruras do filho e menos com a rejeição dos progenitores. Já no caso de Prayers for Bobby (2009) a mãe conservadora e religiosa fanática e homofóbica é central no filme sobre a cura do filho gay. Mas é uma personagem de poucas camadas. Os filmes de Carolina Markowicz se enveredam por outro trajeto. Ao trabalhar com a falsa moralidade dos setores conservadores apresentam personagens multifacetados. A protagonista de pedágio parece um exemplo perfeito de uma mãe conservadora e moralista. Segue como uma religiosa radical o padrão de masculinidade socialmente estabelecido. Mas nas sombras faz um trabalho ilegal no pedágio e compra preservativos para uma amiga ter sexo mais seguro com amantes, diferindo-se do retrato de Mary Griffth de Prayers for Bobby. É uma mãe hipócrita. Essa sua moral claudicante torna a personagem densa e a história mais robusta.

Suellen mergulha cada vez mais fundo em um fosso de ilegalidade enquanto tenta curar o filho. É um pulo em uma vala recheada de hipocrisia e falta de empatia e violência psicológica. Ajuda o sexo prazeroso e proibido da amiga casada. Ajuda os negócios criminosos do companheiro e sua quadrilha. Vai cruzando todos os limites da moral conservadora evangélica na qual se agarra. Mas falta-lhe capacidade para ajudar o filho naquilo que é melhor para ele, do ponto de vista dele. Em quem Suellen pensa quando decide curar o filho? Ela se preocupa com a própria imagem de mãe de viado. É um ato de egoísmo que barra a estética e a sexualidade do filho. Não é pelo bem dele, como qualquer mãe homofóbica argumentaria, é pelo suposto bem dela.

Ambientar a história em uma cidade como Cubatão é outro acerto. O filme corre o tempo todo com uma fotografia escurecida, com muita sombra e pouca luz, é desconfortável como um fosso. Cubatão era considerada a capital química do Brasil nos anos 50 do século passado. Um polo industrial com mais de 30 fábricas. Uma infestação de industrias petroleiras, indústrias de fertilizantes, industrias de metais. De acordo com a BBC, no final dos anos 70 a emissão de componentes químicos tóxicos era tão alta que chegava a mil toneladas por dia. A poluição tornava o ar da cidade irrespirável e a cidade foi considerada pelo ONU como a mais poluída do mundo até a primeira década dos anos 2000. É nesse ambiente com muitas chaminés e fumaça e sombras e poluição sonora que os personagens de Pedágio tentam sobreviver. Embora seja uma Cubatão atual. A poluiçao e o barulho são metáforas. O ar irrespirável dos cenários simboliza o sufocar constante da sexualidade de Tiquinho. O barulho ensurdecedor do trânsito é o ruído produzido por uma moral conservadora a impedir uma mãe de escutar o sofrimento do filho.

Os atores principais, Maeve Jenkins, Kauan Alvarenga e Aline Marta Maia, estão impecáveis em seus papeis na maior parte do filme. Mas há uma cena em que a capacidade do elenco não é bem explorada. Trata-se do momento no qual Suellen descobre a atividade ilegal do companheiro. O texto e as interpretações não convencem. O som dos diálogos em algumas cenas também é problemático. Talvez seja um recurso narrativo para mostrar personagens que não conseguem ser escutados. Mas se torna um problema para o espectador. Há várias cenas com diálogos incompreensíveis e, embora o som esteja alto, não há clareza. Parece uma captação feita com microfones ruins. Exceto esses pontos que podem desagradar, Pedágio é um filme de muitos acertos. O roteiro tem um humor refinado. Há um bom equilíbrio entre cenas pesadas e leves. O espectador consegue respirar em meio às cenas de homofobia e violência psicológica vivenciadas pelo personagem de Kauan Alvarenga. A grosso modo, é uma reflexão impactante sobre a destrutibilidade das normas conservadoras de uma maioria aplicadas sobre uma minoria que não pode se adaptar a elas.





Pedágio

Ano: 2023
Duração: 1h 42min
Direção e roteiro: Carolina Markowicz.
Elenco principal: Maeve Jenkins, Kauan Alvarenga, Aline Marta Maia e Thomas Aquino.
Origem: Brasil




01/11/2023

Passagens (2023): um discurso contra as relações não-monogâmicas?

Eduardo Barbosa ▪ 01 nov 2023


O protagonista de Passagens é um diretor de cinema em seu auge profissional. Tomas, interpretado por Franz Rogowski, é exigente com seus atores. Dirige com mão de ferro seu último filme. É agressivo com sua equipe no set de filmagens. Ele consegue emplacar a obra em um festival renomado. Tem uma carreira de sucesso.

Mas se tudo corre bem na vida profissional o mesmo não se dá em sua vida pessoal. Tomas está em um relacionamento com Martin, interpretado por Ben Wishaw. Apesar de o companheiro ser compreensivo e relevar seu comportamento agressivo com as pessoas que os cercam alguma coisa na relação não vai bem. As coisas pioram quando Tomas conhece uma professora em uma festa e inicia um romance com ela. Agathe (Adèle Exarchopoulos), a professora, aos poucos ocupa um espaço aberto entre os dois parceiros. Tomas acaba se mudando para sua casa e tenta se equilibrar na corda bamba de um relacionamento a três mal calibrado.

Enquanto isso, Martin se afasta aos poucos. Conhece um escritor de romances por quem se interessa afetivamente. Mas não consegue se desvencilhar completamente do antigo companheiro. Todas as tentativas de afastamento o levam de volta a Tomas.

Agathe fica grávida. Surge um conflito entre seus pais e Tomas. A sexualidade e o comportamento do diretor os desagradam. Os pais interferem no relacionamento, complicando um pouco mais a tentativa de Tomas de inserir a companheira entre ele e Martin. Por fim, a professora desiste de bancar a relação a três e resta a Tomas voltar ao relacionamento com Martin. Mas as escolhas feitas no encontro com Agathe resultam em fendas mais profundas que impedem uma retomada com Martin.

Pensar apenas em si mesmo quando se tem uma vida a dois é o pecado de Tomas. Ele cruza os limites. Ignora os desejos do companheiro. A conta do seu hedonismo chega e Tomas precisa pagá-la. A ideia do filme é discutir uma relação não-monogâmica e o faz a partir de uma visão negativa. A entrada de Agathe na vida dos dois produz um desmoronamento crescente até deixar tudo em escombros. A mensagem é clara acerca dos perigos de um relacionamento não-convencional envolvendo mais de duas pessoas. Tudo pode terminar em um punhado de moscas na mão. Fica parecendo, nesta história de poliandria, que a terceira pessoa é mera fonte de prazer.

A interpretação de Franz Rogowski tem a mesma qualidade vista em Great Freadom (2022), impecável. Ele consegue dar vida a esse homem dividido entre o amor-próprio em excesso e o amor pelo companheiro de forma irretocável, convencendo o espectador desse desajuste a cada cena. A química entre ele e Ben Wishaw é inquestionável, o que dá vigor aos conflitos e enriquece o drama. Mas se este é um elemento a sobrar entre eles, não se pode dizer o mesmo entre Rogowski e Adèle Exarchopoulos. A paixão do casal na tela se dá a duras penas e só se sustenta nas cenas de sexo, faltam os olhares, as intimidades, aquilo que deixa o casal de homens tão convincente na tela. Outro ponto questionável são as cenas de sexo filmadas exaustivamente. Elas tem por objetivo mostrar a atração entre as parcerias amorosas. No entanto, cansam pelo excesso do uso.

Mas, de modo geral é um bom drama sobre relacionamentos amorosos não-hegemônicos. Só não espere por finais adocicados salpicando o destino dos personagens. Ira Sachs soa mais pessimista do que nunca com Passagens.




Passagens

Título original: Passages
Ano: 2023
Duração: 1h 32min.
Direção: Ira Sachs
Roteiro: Ira Sachs e Mauricio Zacharias
Elenco principal: Franz Rogowski, Ben Wishaw e Adèle Exarchopoulos
Origem: França





06/10/2023

O lúdico é a estética queer de Rotting In The Sun


Eduardo Barbosa ▪ 06 out 2023


Rotting in the sun conta a história de um artista em crise existencial. O arco do protagonista é descendente. Sua derrocada aumenta a cada virada de ato. Cada dificuldade é um motivo a mais para a insignificância da própria existência. Suas telas recém-pintadas foram arruinadas pela empregada da casa na qual mora. A HBO, para quem trabalha, se interessa mais por um projeto de um influenciador de Instagram do que por suas ideias. Seu remédio para a falta de sentido do mundo são as altas doses de Ketamina e a leitura de filosofia suicida. Quando o narcótico deixa de suprir prazer suficiente ele entra em uma rota de busca pelo método mais eficaz para dar cabo de si. Esta é, a grosso modo, a proposta inicial do filme.

Sebastián Silva brinca com sua própria imagem na construção do protagonista ao interpretá-lo na frente da câmera e dar-lhe seu nome. A brincadeira consigo e o arco de ruína aumentam quando ele resolve visitar uma praia de nudismo onde homens fazem pegação em público. É ali que conhece Jordan Firstman, um influenciador digital que também empresta ao personagem seu próprio nome e suas atividades laborais da vida real. O influenciador convida Silva para dirigir seu próximo trabalho. Mas a ideia não o agrada, Jordan é promíscuo demais, espalhafatoso demais, fútil demais. Mas o diretor acaba se convencendo a trabalhar com Silva. E com esse movimento outra personagem cresce na história e acelera seu o arco de ruína.

Em uma primeira parte o filme narra a crise de Silva, o sexo pulsante na tela, a diferença entre seu personagem na beira do precipício e o coadjuvante intensamente hedonista. Se o diretor perdeu o prazer na vida e só vê saída na morte, o influenciador vive como um discípulo de Aristipo de Cirene. O sentido da vida de Firstman está no sexo e no narcisismo potencializado pelas mídias digitais.  Para um a morte é a salvação. Para o outro os prazeres carnais é um fim em si mesmo e para isso quanto mais vida, melhor.

A outra parte é sobre Señora Vero, a empregada da casa de Silva. A empregada parece ser o obstáculo no caminho do diretor e do influenciador, uma antagonista. A chilena Catalina Saavedra é quem a interpreta. A personagem é parecida com uma criada problemática de outro filme do diretor, La nana (2009). Ela é invisível na casa durante toda a primeira parte e seus dramas não interessa aos patrões. Mas a segunda parte do roteiro gira todo em torno de suas ações. Essa guinada borra fronteiras entre antagonista e protagonista. Não é fácil definir a personagem a partir do segundo ato. Ela ganha centralidade na história e mais tempo de tela, ocupa o papel de protagonista e define o destino dos outros personagens.

Rotting In The Sun no primeiro e segundo ato parece uma mistura de O estranho no lago (2013) com A criada (2009). Há uma praia nudista com abundantes cenas de sexo explícito em uma cena e outra cena desenhando os traços de uma empregada atrapalhada. Corpos masculinos são enquadrados sem qualquer pudor em uma cena e em outra investiga-se uma morte. São duas formas distintas que se mesclam com maior cimento no ato final, quando o desfecho ganha em singularidade e muda o tom do filme de um drama existencial para um suspense policial.

Em linhas gerais, trata-se de um drama de humor ácido. Sebastián Silva em entrevista para a Mubi disse que o filme é como "uma comédia misantropa, uma carta cheia de ódio à humanidade,  mas com humor". E à guisa de advertência diz que o filme não busca ser uma representação do mundo gay. É apenas uma história de alguns homens específicos e seus comportamentos hedonistas, narcisistas, misantrópicos.  Considerar o aviso  na hora de assisti-lo é uma tarefa do espectador. As piadas com entorpecentes, suicídio, morte e sexo, talvez soem inapropriadas para alguns. Mas o lúdico do drama é a sua estética queer, subversiva e incômoda, por excelência.



Rotting In The Sun

Ano: 2023
Duração: 1h 51min
Direção e roteiro: Sebastián Silva
Elenco principal: Sebastián Silva, Jordan Firstman, Catalina Saavedra, Juan Andrés Silva e Pedro Peirano
Origem: EUA, México

21/09/2023

Estranha Forma de Vida: o passeio de Almodóvar pelo faroeste


Eduardo Barbosa ▪ 22 set 2023


Há diretores que trabalham com filmes de gênero utilizando fórmulas prontas, amplamente utilizadas, e produzem bons filmes. E há os diretores que fazem o mesmo tipo de filme manejando as fórmulas de gênero de forma mais autoral. Ao espectador, nesse segundo caso, o que se oferece como resultado final não é apenas mais um bom filme deste ou daquele gênero, é a singularidade da obra. São muitos os exemplos em relação ao western: Sergio Leone e seus planos detalhes com as trilhas-personagens de Enio Morricone na trilogia dos dólares: Fistful Of Dollars (1964), For a Few Dollars More (1965), The Good, The Bad And the Ugly (1966); Quentin Tarantino e a violência orgasmática de The Hateful Eight (2015). Jane Campion, a ausência de armas e a violência psicológica em The Power Of The Dog (2021). E Almodóvar com sua paleta de cores berrantes em punho para construir os personagens de Estranha Forma de Vida (2023).

O filme começa apresentando uma fado português de Amália Rodrigues interpretado por Caetano Veloso. A letra é sobre alguém questionando paixões dolorosas e impossíveis. Almodóvar não escolheu por acaso a música intitulante do filme. O timbreado feminino da voz de Caetano na abertura anuncia ao espectador que dessa vez os homens falarão de afetos no Velho Oeste. O lugar de sofrimento explícito por amor no western sempre foi feminino. As mulheres sofrem, falam e choram. Os homens competem entre si, duelam, atiram, e diante de um amor que dói vão embora de olhos secos e gatilhos sempre lubrificados, como em Shane (1953) de Georges Stevens. Por isso se faz necessário a voz de um homem para abrir a história. É preciso desrecalcar o sofrimento masculino no canto de abertura.

O enredo parece simples no incício. Um ex-pistoleiro de aluguel retorna do México para uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos para rever seu antigo companheiro de trabalho. Descobrimos com o reencontro que eles tiveram um caso, mas se separaram e seguiram caminhos distintos. Um deles virou xerife. O outro tornou-se rancheiro. Como nos trabalhos anteriores de Almodóvar o drama vai se encorpando a cada virada de ato, mas neste trabalho também ganha musculosidade uma carga erótica a cada nova cena com os dois protagonistas, Jake (Ethan Hawke) e Silva (Pedro Pascal). A carga de desejo represado pulsa nos mínimos detalhes. De um jeito requintado, a tela pulsa com um tesão contido entre os dois, mas irrefreável. Toda essa primeira apresentação faz pensar que é só mais uma história de amor impossível. Silva diz que retornou apenas para rever Jake, após décadas de distanciamento, não para ver um filho que vive nos arredores da cidade. Jake, às voltas com a resolução de um assassinato na cidade, desconfia de Silva, o espectador também.  Ele já tem as pistas necessárias que levam ao assassino. É um homem manco. O filho de Jake é manco. O que se desenha com essa revelação é um problema que Jake e o espectador precisam resolver. Silva retornou por amor ou para defender o filho?

A partir disso a trama se encorpa. Todos os elementos de um western clássico jorram da tela. O forasteiro recém-chegado a desestabilizar a ordem local. As perseguições a cavalo. O bandido que não hesita em sacar o revólver. O confronto final com um duelo. Até as roupas do mocinho, escuras, segue o padrão clássico. No entanto, as cores de Almodóvar estão longe de representar apenas uma construção maniqueísta simples de personagens, como na composição do cowboy androide de Westworld (1973) de Michael Crichton, por exemplo.

O figurino, criado pelas mãos do diretor criativo da Ives Saint Laurent, Anthony Vaccarello, ajuda a dar profundidade aos personagens. Jake usa um terno escuro sobre camisa azul ou branca. Os tons azuis demostram a frieza em relação aos sentimentos de Silva e os tons escuros representam o isolamento, o afastamento em relação ao amante e à própria sexualidade. Isso fica evidente na cena em que os dois estão jantando e uma parte minúscula de vermelho surge por baixo do paletó escuro de Jake. O vermelho berrante ali é um pedaço de desejo gritando e vazando por baixo da repressão. A toalha da mesa de jantar também é um xadrez em vermelho e branco, são pitadas de desejo se colocando entre eles. Quando os dois vão para o quarto, o xerife se despe do terno escuro e deixa ver a terceira peça, um colete vermelho vivo, cor que também está na cama, desejo em estado bruto, intensidade de sentimentos.

Silva é construído com uma paleta de cores oposta ao amante, tem um guarda-roupas e um jogo de cama coloridos com verde, amarelo, vermelho e tons terrosos. É um personagem carregado de esperanças tanto em relação ao xerife quanto ao filho. Por isso sua primeira aparição é com uma jaqueta verde ao som de um fado sofrido enquanto cavalga ao encontro dos homens que ama. Esse verde também é referência ao seu ofício de homem da terra, ligado a natureza, assim como o marrom. O amarelo tem tudo a ver com a sensualidade desse mexicano fogoso a seduzir o homem da lei.

Apesar da construção cuidadosa dos personagens e seus figurinos, dos cenários, dos planos, Almodóvar derrapa no roteiro com o desenho de Silva. O norte-americano Jake é sóbrio e apesar de seu passado de pistoleiro de aluguel se redimiu e tornou-se um homem respeitado. O latino Silva é pai de um assassino. Sua casa produz bandido. E ele é fogoso. Esta é uma ideia corrente entre os países ditos desenvolvidos sobre os "exóticos" habitantes da América Latina. Na maioria das vezes eles são representados no cinema como bandidos, sexualizados ao extremo, traficantes de drogas: perigosos sedutores ou perigosos criminosos. Também há um ou outro diálogo ruim em cenas nas quais o personagem de Pascal fala sobre seu amor por Jake, soa piegas ao extremo e juvenil demais para um homem maduro.

No entanto, mesmo derrapando aqui e ali, Estranha Forma de Vida é como um velho e bom conto de faroeste de revista literária. Cumpre os requisitos do gênero e inova para dialogar com maneiras contemporâneas de pensar as relações humanas acerca de afetividade entre pessoas do mesmo sexo. O final após trinta minutos pode soar estranho para quem está acostumado apenas com longa-metragens em suas sessões de cinema. Mas para um curta-metragem é o suficiente. A história bem contada, as atuações convincentes do elenco e a estética almodovariana arrojada e lapidada pela Saint Laurent é o que pode deixar o espectador com uma vontade de ver mais sobre a dupla de protagonistas. Em parte, Almodóvar satisfaz esse anseio na entrevista ao final do filme, contando como seria se a história continuasse.
É uma daquelas histórias que permanecem ecoando na cabeça do espectador mesmo após os créditos finais.



Estranha forma de vida

Título original: Strange Way Of Life
Ano: 2023
Duração: 31 min.
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar.
Elenco principal: Ethan Hawke, Pedro Pascal, George Steane, Jason Fernández, José Condessa.
Origem: Espanha


17/09/2023

O sacrifício do Pai em Carvão (2022), de Carolina Markovicz


Eduardo Barbosa ▪ 17 set 2023


Na peça de Sófocles, o filho de Laos consegue uma vida material exitosa após operar com as próprias mãos a morte do pai. A figura do pai é o coração dessa tragédia grega. Sigmund Freud também bebeu da fonte do mito edipiano para produzir o conceito psicanalítico de complexo de Édipo para explicar os mecanismos psíquicos estruturantes do sujeito humano. Freud construiu um pilar sólido de análise a partir de Édipo. A relação edipiana escorre vistosa pelos vãos da trama de Carvão.

A proposta que muda a vida da família se ergue sobre o sacrifício do homem mais velho da casa, o pai de Irene. Enquanto ele vegeta doente em uma cama de beliche, Irene administra a carvoaria e a miséria da casa e o marido dorme aqui e ali. O título do filme faz alusão àquilo que garante a sobrevivência dos quatro, mas é também um símbolo de destino de um homem que já não contribui mais para a manutenção do orçamento familiar. No ato de virar carvão o pai se transmuta em dinheiro. O forno da carvoaria, antes gerador de parcos recursos financeiros, torna-se o alívio da casa enquanto expele a fumaça do pai pelas chaminés. A prosperidade chega à galope. O marido compra motocicleta. O filho ganha celular.

Irene não se pune com a cegueira, como acontece com Édipo no mito grego. Mas precisa, simbolicamente, cegar os vizinhos para que não conheçam o destino do pai. Desconfiar e ser objeto de desconfiança é seu castigo.

O trabalho de interpretação de Maeve Jinkings é a joia do filme, fazendo vívidas as tensões e aflições da personagem. Não menos primorosa é a interpretação do ator mirim que dá vida ao seu filho, um personagem de falas incisivas e certeiras. O filme não se preocupa em dar cabo das questões paralelas surgidas no tecer da história central, ficam em aberto, mas a morte do pai exige outra vida em troca para fechar o roteiro. E ela acontece.

Carvão é um filme para o espectador refletir sobre os alicerces da família tradicional. Aqui ele se erige sobre segredos e mentiras.



Carvão

Ano: 2022
Direção e roteiro: Carolina Markovicz. 
Elenco principal: Maeve Jinkings, César Bordón, Jean Costa, Camila Márdila, Romulo Braga, Pedro Wagner e Aline Marta.
Origem: Brasil
Duração: 1h 40 min.