Eduardo Barbosa ▪ 15 dez 2023
Suellen (Maeve Jenkins) trabalha como cobradora em um pedágio. Divide uma casa com um namorado e com seu filho Tiquinho (Kauan Alvarenga). A relação entre mãe e filho não corre bem. Tiquinho é um garoto gay e gosta de postar vídeos na internet nos quais publiciza sua feminilidade. A mãe policia seu modo de ser e se vestir. Ela quer um filho masculino e normal com roupas e jeito de homem. Ele bloqueou-a em suas redes sociais para evitar confrontos. Mas as amigas de Suellen veem o conteúdo publicado e exibem-no para a mãe. Todas as tentativas de anular a sexualidade do filho se mostram infrutíferas. Até que ela descobre na cidade um pastor evangélico especialista em cura gay. Ela o procura. O valor do tratamento é alto demais e não cabe em seu orçamento. Mas o mundo lá fora, diz ao filho, é cruel demais com gente como ele. Qualquer sacrifício é válido para toná-lo um homem normal.
O roteiro escrito por Carolina Markowicz constrói bons encadeamentos. A solução encontrada por Suellen para curar o filho tem origens nos primeiros borbotes da trama. No primeiro ato do filme ela descobre como o companheiro ganha a vida. Não é por meios legais. Ela o expulsa de casa. No entanto, partindo do princípio de que os fins justificam os meios, ela recorre ao ex-companheiro para conseguir o dinheiro para pagar o tratamento de Tiquinho. Suellen constrói uma nova face para um segundo trabalho no pedágio. Torna-se duplo: legal e ilegal, moral e imoral. Ao mesmo tempo simples cobradora e criminosa operando da janela de sua cabine.
Markowicz já trabalhara com essas questões em seu filme anterior, Carvão (2022). Neste longa-metragem a trama central gira em torno de uma mulher sacrificando a vida do pai acamado por uma boa quantia de dinheiro. As aparências importam muito para os personagens de Carvão. A família deve ter ares de normalidade e perfeição. Diversas subtramas disparam do enredo, incluindo a homossexualidade. Mas este tema não ganha musculosidade na história. Parece que Markowicz quis guardar as cartas na manga para apostar tudo em Pedágio.
O roteiro mergulha mais no incômodo materno em relação ao filho gay do que nas tormentas de Tiquinho lidando com uma mãe homofóbica. Essa abordagem é diferente de outros filmes sobre o mesmo assunto, como o estelar Boy erased (2018), por exemplo. O filme, com Russel Crowe e Nicole Kidman, trabalha mais com as agruras do filho e menos com a rejeição dos progenitores. Já no caso de Prayers for Bobby (2009) a mãe conservadora e religiosa fanática e homofóbica é central no filme sobre a cura do filho gay. Mas é uma personagem de poucas camadas. Os filmes de Carolina Markowicz se enveredam por outro trajeto. Ao trabalhar com a falsa moralidade dos setores conservadores apresentam personagens multifacetados. A protagonista de pedágio parece um exemplo perfeito de uma mãe conservadora e moralista. Segue como uma religiosa radical o padrão de masculinidade socialmente estabelecido. Mas nas sombras faz um trabalho ilegal no pedágio e compra preservativos para uma amiga ter sexo mais seguro com amantes, diferindo-se do retrato de Mary Griffth de Prayers for Bobby. É uma mãe hipócrita. Essa sua moral claudicante torna a personagem densa e a história mais robusta.
Suellen mergulha cada vez mais fundo em um fosso de ilegalidade enquanto tenta curar o filho. É um pulo em uma vala recheada de hipocrisia e falta de empatia e violência psicológica. Ajuda o sexo prazeroso e proibido da amiga casada. Ajuda os negócios criminosos do companheiro e sua quadrilha. Vai cruzando todos os limites da moral conservadora evangélica na qual se agarra. Mas falta-lhe capacidade para ajudar o filho naquilo que é melhor para ele, do ponto de vista dele. Em quem Suellen pensa quando decide curar o filho? Ela se preocupa com a própria imagem de mãe de viado. É um ato de egoísmo que barra a estética e a sexualidade do filho. Não é pelo bem dele, como qualquer mãe homofóbica argumentaria, é pelo suposto bem dela.
Ambientar a história em uma cidade como Cubatão é outro acerto. O filme corre o tempo todo com uma fotografia escurecida, com muita sombra e pouca luz, é desconfortável como um fosso. Cubatão era considerada a capital química do Brasil nos anos 50 do século passado. Um polo industrial com mais de 30 fábricas. Uma infestação de industrias petroleiras, indústrias de fertilizantes, industrias de metais. De acordo com a BBC, no final dos anos 70 a emissão de componentes químicos tóxicos era tão alta que chegava a mil toneladas por dia. A poluição tornava o ar da cidade irrespirável e a cidade foi considerada pelo ONU como a mais poluída do mundo até a primeira década dos anos 2000. É nesse ambiente com muitas chaminés e fumaça e sombras e poluição sonora que os personagens de Pedágio tentam sobreviver. Embora seja uma Cubatão atual. A poluiçao e o barulho são metáforas. O ar irrespirável dos cenários simboliza o sufocar constante da sexualidade de Tiquinho. O barulho ensurdecedor do trânsito é o ruído produzido por uma moral conservadora a impedir uma mãe de escutar o sofrimento do filho.
Os atores principais, Maeve Jenkins, Kauan Alvarenga e Aline Marta Maia, estão impecáveis em seus papeis na maior parte do filme. Mas há uma cena em que a capacidade do elenco não é bem explorada. Trata-se do momento no qual Suellen descobre a atividade ilegal do companheiro. O texto e as interpretações não convencem. O som dos diálogos em algumas cenas também é problemático. Talvez seja um recurso narrativo para mostrar personagens que não conseguem ser escutados. Mas se torna um problema para o espectador. Há várias cenas com diálogos incompreensíveis e, embora o som esteja alto, não há clareza. Parece uma captação feita com microfones ruins. Exceto esses pontos que podem desagradar, Pedágio é um filme de muitos acertos. O roteiro tem um humor refinado. Há um bom equilíbrio entre cenas pesadas e leves. O espectador consegue respirar em meio às cenas de homofobia e violência psicológica vivenciadas pelo personagem de Kauan Alvarenga. A grosso modo, é uma reflexão impactante sobre a destrutibilidade das normas conservadoras de uma maioria aplicadas sobre uma minoria que não pode se adaptar a elas.
Pedágio
Ano: 2023
Duração: 1h 42min
Direção e roteiro: Carolina Markowicz.
Elenco principal: Maeve Jenkins, Kauan Alvarenga, Aline Marta Maia e Thomas Aquino.
Origem: Brasil