24/12/2023

Saltburn

Eduardo Barbosa ▪ 24 dez 2023



Uma mistura de Carrie, a estranha (2002) com Verão 85 (2020) e Bela vingança (2020). É mais ou menos essa salada que Emerald Fennel faz em Saltburn. O roteiro é todo bem alinhavado, resultando em uma história bem contada. Mas Fennel não entrega tudo de bandeja para o espectador. Há espaço para interpretações variadas. É uma trama de inveja ou de uma paixão doentia? Pode ser uma coisa ou outra. Ou ambas. Depende do ponto de vista do espectador.

Oliver Quick (Barry Keoghan) é um garoto aparentemente pobre chegando em uma universidade com estudantes de classe alta saindo pelo ladrão. O início da história bebe da mesma fonte de uma centena de outros filmes sobre hostilidades em ambientes escolares. Há dois grupos de alunos. Os populares, festivos e descolados. E os excluídos. Oliver não tem roupas de grife, nem uma postura descolada, logo pertence ao grupo dos excluídos. Enquanto tenta fazer amizade dentro desse seu novo círculo social, um rapaz do outro grupo lhe chama a atenção. É Felix Catton, um super-rico interpretado por Jacob Elodi. Oliver faz um favor para Felix a certa altura da história e ascende dos marginalizados para os descolados quando os dois se tornam amigos. A amizade entre os dois aumenta até Felix convidá-lo para passar as férias em sua mansão, a luxuosa Saltburn. Mas a proximidade com a família Catton coloca a amizade em xeque quando os segredos de Oliver começam a surgir.

É mais uma daquelas histórias sobre super-ricos se dando mal. Já foram feitas dezenas delas, como O menu (2022), Triângulo da tristeza (2022), Glass ônion (2022), Parasita (2019). O interessante no filme de Emerald Fennel é que a história é feita para se torcer contra os personagens ricos mesmo diante das revelações sobre o caráter e a condição social de Oliver. Há uma série de pontos de virada depois do segundo ato. A imagem inicial do protagonista vai se desmanchando a conta gotas. Oliver é mesmo um garoto pobre? E Felix, é um cara simpático ou um boy-lixo tão esnobe quanto sua mãe? O ato final leva a crer que a história de Oliver Quick conta sobre uma vingança. Como foi com Cassie (Carey Mulligan) em Bela vingança (2020). O próprio Oliver diz em uma cena ou outra no começo e ao final do filme que nunca esteve apaixonado por Felix. Era ódio. Mas o roteiro deixa inúmeras pistas ao longo do caminho para o espectador tirar as próprias conclusões. A cena da banheira sendo lambida. O ato sexual na terra molhada. Um ódio bem questionável.

A atuação de Barry Keoghan é das melhores. O ator transita muito bem entre o mocinho marginalizado do ambiente escolar no primeiro ato do filme e o manipulador de Saltburn no ato final. Mas não é um papel singular da carreira de Keoghan. Seu curriculum tem um histórico de personagens semelhantes. Já fez uma figura estranha em O sacrifício do cervo sagrado (2017). Depois continuou com um personagem diferentão em The banshees of Insherin (2023). É quase a sua zona de conforto. Ou, analisando por outra perspectiva, é o lugar que Hollywood lhe destina por não ter a beleza padrão de um jovem ator em ascensão, como o coadjuvante Jacob Elordi com quem divide a tela no filme de Fennel. A estranha beleza de Keoghan só pode ser utilizada para construir personagens excêntricos.

Alguns personagens são bastante caricatos, como o estudante interpretado por Ewan Mitchel que aparece no primeiro ato, e o mordomo Duncan, do Paul Rhys. Carey Mulligan saiu do papel principal em Bela vingança (2020), também dirigido e escrito por Fennel, para surgir em Saltburn como um petisco rápido em um elenco no qual o prato principal é composto por Kheogan e Elordi e Pike. Apesar de uma caricatura aqui e outra ali é impossível não se divertir com as conversas e os jantares na mansão.

Em termos artísticos, Saltburn é um filme excelente. Os personagens são bem construídos. A trama funciona. Mas é um filme tão cínico quanto filmes de orçamento milionário sobre personagens em situação de extrema vulnerabilidade social. O cinema é uma indústria. E indústrias fabricam produtos para extrair lucro. Mascarar um produto como crítica social é uma ótima estratégia de mercado. Quantos bairros populares poderiam ser construídos com um orçamento de milhões de dólares de um filme considerado "crítica social"? O vencedor do Oscar de melhor filme de 2020, por exemplo, custou cerca de 11 milhões de dólares para ser produzido. Quantas famílias como aquelas retratadas no filme, em situação de fome e falta de moradia, teriam condições mais dignas de vida com esse montante aplicado em políticas públicas de assistência às classes baixas? Por isso a tal "crítica social" dessas obras soa cínica. Saltburn segue uma linha parecida. Mas não porque o protagonista é um personagem  miserável construído com uma soma milionária se insurgindo contra as classes altas. É cínico porque a elite do cinema holiwoodyano vive encastelada em suas Saltburns particulares em Los Angeles ou outras metrópoles com suas máscaras de vidas perfeitas e seus esnobismos, exatamente como Elsbeth Catton, interpretada pela Rosamund Pike. A história de Oliver Quick não é uma crítica social. É a piada de uma classe social sobre si mesma e como entretenimento funciona muito bem.




Saltburn

Ano: 2023
Duração: 2h 11min. 
Direção e roteiro: Emerald Fennell
Elenco principal: Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Granton, Alison Oliver e Carey Mulligan
Origem: Reino Unido