19/03/2024

Andrew Haigh utiliza mortos e metáforas em Todos Nós Desconhecidos para falar sobre a solidão gay

O diretor embala a história de Adam e Harry com uma camada de realismo fantástico na qual os mortos povoam o cotidiano do protagonista. É um recurso pouco visto em filmes sobre o amor entre dois homens.  O resultado é um conto tocante sobre as rejeições e opressões contra a criança queer e a solidão vividas por homens gays.

Eduardo Barbosa ▪ 19 mar 2024


A
dam (Andrew Scott) é um roteirista que vive em Londres e mora em um grande prédio de apartamentos quase vazio. Um dia o alarme de incêndio dispara. Ele sai pelos corredores desertos, desce para a rua e avista da calçada seu único vizinho no edifício. É Harry (Paul Mescal), que logo depois bate em sua porta com uma garrafa de bebida na mão e uma ideia erótica na cabeça. Adam não aceita nem uma coisa nem outra. Dispensa o rapaz sem hesitação. Mais tarde, Adam descobre que a intenção de Harry ia muito além de uma bebida ou de sexo casual. Ele só não suportava mais sua solidão.

A câmera está sempre a enquadrar o gigante prédio vazio. Metáfora para um mundo solitário habitado por dois homens que se atraem, mas um deles está apegado demais ao sentimento de rejeição para ser acolhido e acolher alguém. Sentir peso na solidão não é incomum dentro do recorte populacional do qual Adam faz parte. De acordo com um estudo do Williams Institute da Universidade da Califórnia, 60% dos idosos gays sentem falta de companhia e 50% se sentem isolados. Embora os dois personagens do filme não sejam idosos, eles também experimentam essa sensação de isolamento e solidão. E ambos procuram formas distintas de atenuar o sofrimento advindo dessas percepções. A trama de Andrew Heigh destrincha os dois lados do manejo da solidão gay. De um lado temos Harry às voltas com as dores de sua solidão insuportável e do outro há Adam e seu retorno aos pais.

O protagonista está escrevendo um novo roteiro quando os reencontra. A mãe quer saber sobre sua vida, se tem namorada, se é bem sucedido no trabalho. Ele conta que é gay e a mãe não tem uma boa reação, tinha certeza sobre sua heterossexualidade, "ele nem parecia homossexual", diz ter ouvido que esta vida é muito solitária. Ele nega, sem muita convicção. Em outra das visitas há uma conversa sobre sexualidade entre ele e o pai. Adam  o questiona se sabia de sua orientação sexual. O pai sabia desde muito cedo e pergunta se era difícil com os colegas de escola. O filho narra todas as violências sofridas por ser um menino gay e pergunta por que o pai nunca entrou no quarto para saber porque sempre chorava na volta do colégio. O pai responde que era melhor não conhecer as causas do choro. Não havia o que fazer a não ser ignorar. Se fosse um dos colegas da escola, também faria com Adam o mesmo que aquelas crianças faziam.

Adam cresceu com uma rejeição dupla, dentro e fora da família. A mãe se apegava em sua imagem ideal de filho heterossexual e cegava-se para a realidade. O pai sabia, mas silenciava-se. Ambos precisavam se afastar de um lugar de escuta para não acolher os sofrimentos e a diferença do filho. A família de Adam é um braço da sociedade inglesa homofóbica dos anos cinquenta e sessenta. Seu projeto de homem é o grande macho heterossexual. Aquele que desde muito cedo já aprende a agredir o feminino e principalmente se esse feminino estiver em um menino. Essa sociedade e os pais formados por ela não têm interesse em proteger crianças como Adam. Eles querem proteger a heteronormatividade. Então, pouco importa se essa criança queer sofre. O mais importante é reprimir o feminino dos meninos e o masculino das meninas.

Ao tornar-se adulto, Adam ainda ainda carrega em si o menino rejeitado e traumatizado dos tempos de escola. Faz do grande prédio vazio o seu quarto da infância para abrigar seus sofrimentos solitários. Mas as conversas durante o retorno aos pais lhe fazem bem. Há reconciliações, perdões. Ele é acolhido. Essa volta aos traumas vividos com os pais permitem uma viabilidade das vivências amorosas do filho. É na reelaboração das experiências vividas na infância que Adam pode se abrir para o mundo fora do seu gigantesco prédio vazio. Ele olha para os eventos traumáticos não mais como o menino, mas como homem adulto. Isso lhe possibilita ter capacidade de controlar os efeitos dessas vivências. Surge um interesse pelo olhar do vizinho. Os dois se encontram novamente e se acolhem. A mãe e o pai gostam de Harry e estimulam o filho a tocar o romance adiante. O relacionamento é efeito do acolhimento dos pais. Mas o retorno aos pais produz um efeito duplo. Adam se liberta para vivências amorosas, mas se prende à aprovação deles. Um homem desejando manter os laços afetivos com um companheiro e angustiando-se por não saber se seus pais, vivos ou mortos, aceitariam o relacionamento.

De modo geral, Todos Nós Desconhecidos é como uma mistura de O sexto Sentido (1999) com o livro Pedro Páramo, de Juan Rulfo. No longa dirigido por M. Night Shyamalan o personagem de Bruce Willis é um psicólogo ajudando o menino Cole Sear a lidar com as pessoas mortas com as quais convive cotidianamente. Já no romance de Rulfo o protagonista sai em busca do pai e encontra e conversa com mortos pelo caminho percorrido. Andrew Haigh também lança mão desse tipo de realismo fantástico. Já no primeiro ato o espectador sabe que os pais para quem Adam retorna já morreram há mais de uma década. A dúvida a pairar depois dessa revelação é sobre a realidade de outros personagens, como Harry. Se o protagonista interage com gente morta como se estivessem vivas como saber se ele mesmo e seu companheiro não estão mortos? Mas essa é só uma questão de fundo. Não importa muito se ao seu redor há apenas fantasmas ou se vive de fantasia em fantasia para manejar o peso de sua solidão. A grande questão é qual a função dessa gente morta com as quais Adam se relaciona.

O retorno aos mortos é um ponto muito interessante do filme. Para a psique humana não existem mortos. Porque os efeitos provocados no encontro com o outro gera experiências que se mantêm reverberando em nós enquanto vivemos. Na maioria das vezes é um processo inconsciente. É como se aqueles com os quais nos relacionamos ao longo da vida fossem parte de nós até nosso último fechar de olhos. Até lá, todos que nos geraram alguma vivência significativa, boa ou ruim, continuam vivos em nós. Por isso os integrantes do círculo social de Adam se fazem presentes em sua vida adulta, mesmo mortos há tempos. O efeito desses encontros dura enquanto Adam estiver vivo e ele vai convivendo com seus mortos tal como um Pedro Páramo ou um Cole Sear.

Esse longa-metragem do diretor britânico chega ao cinema em um momento de recrudescimento dos crimes de ódio contra LGBTs+ na Inglaterra. A homofobia era institucionalizada no Reino Unido, do qual a Londres de Adam faz parte, até 1967. Foi nessa época de legislação implacável contra sexualidades dissidentes que Alain Turing (1912-1954), o pai da computação, foi condenado por "indecência grave" em 1952, castrado quimicamente e morto por suicídio por manter um relacionamento amoroso com um homem de 19 anos. Em 2018 o registro desses crimes no país teve um aumento de 28% em relação ao ano anterior, de acordo com a Reuters. Levantamentos da Associação Internacional Europeia  de Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais apontam que os os suicídios aumentaram nos últimos dez anos na Europa. Isso mostra que o problema é global. E aqueles fantasmas de uma Inglaterra violenta contra LGBTs+ pré-anos 60 retornaram. Isso mostra que fantasmas não vivem apenas no nível individual da psique humana. Eles também habitam a consciência coletiva e estão sempre prontos para um retorno a partir de discursos conservadores e extremistas de políticos, religiosos e organizações de direita.

Brasileiros sabem muito bem que estas violências contra homens como Adam e Harry não se restringe apenas ao Reino Unido. No Caso do Brasil, de acordo com a ONG Grupo Gay da Bahia, 45,89% das vítimas de crime de ódio em 2021 eram homens gays e 44,62% eram travestis e mulheres transexuais. Dessas mortes, 82,91% ocorreram por homicídio e 8,23% foram por suicídio. Em 2022 ocorreu uma morte a cada 34 horas. Dessas vítimas, 52% eram homens gays e 45% eram travestis e mulheres transexuais.  E 67% da totalidade das vítimas tinham entre 19 e 45 anos. Os efeitos dessa violência quando não mata por homicídio resulta em adoecimento mental e suicídio.

São recortes desse cenário de violência, rejeição, adoecimento mental e solidão que Andrew Haigh apresenta na história de Adam e Harry. Todos Nós Desconhecidos é o conto de um homem de meia-idade tentando sobreviver à esse mundo homofóbico muito real fora da tela e abrigando-se em um lugar solitário para manter-se a salvo. Sobrevivência. Mas para muitos homens gays o isolamento não é solução. Não é o remédio. É o veneno. Prepare os lencinhos para o ato final.




Todos Nós Desconhecidos

Título original: All Of Us Strangers
Ano: 2023
Duração: 1h 45min
Direção e roteiro: Andrew Haigh
Elenco principal: Andrew Scott, Paul Mescal, Claire Foy e Jamie Bell
Origem: Reino Unido