Eduardo Barbosa ▪ 23 dez 2023
Trabalhar com um vilão sem corpo e sem materialidade é mais comum no cinema-catástrofe. É o caso das forças antagonistas de Birdbox (2019), The Happening (2008) ou mesmo Ruído branco (2022). A ausência do corpo de um vilão é um elemento que, se bem trabalhado, pode gerar um suspense em alta voltagem. Sam Smail prova seu saber na utilização desse recurso construindo vários níveis de tensão enquanto se espera por explicações sobre vilões.
Amanda, uma publicitária de classe média, resolve alugar uma casa de férias fora da cidade onde mora para passar uns dias com seu marido e os filhos. Tudo corre bem. Eles aproveitam a casa, se divertem na piscina, descansam na praia. Até que coisas incomuns começam a acontecer. Um petroleiro invade a praia. Cervos invadem o jardim da casa. O sinal de internet e a televisão não funcionam. E dois estranhos chegam no meio da noite afirmando que a casa é deles e há uma pane de energia lá fora. Amanda não acredita neles e não é possível checar as informações que trazem, pois os celulares não funcionam.
Os estranhos são interpretados por Mahershala Ali e My'Hala Herrold. Um pai e uma filha, negros. Julia Roberts e Ethan Hawke são os pais de uma família branca. Um conflito racial se instala aos pouco entre eles. Amanda diz ao marido que eles não tem cara de donos daquela casa. Em outro momento supõe que o cabelo afro da moça negra é um empecilho no uso da piscina. Amanda pratica um racismo velado. A chegada de dois negros torna aparente não apenas o racismo das classes médias brancas dos Estados Unidos, mas também um certo machismo de quem elaborou o roteiro. Amanda logo entra em conflito com a recém-chegada Ruth e a moça é tão irritadiça quanto ela. Já os dois homens dialogam pacificamente e dividem bebidas. As mulheres são belicosas e neuróticas. Já os homens são todos racionais e equilibrados e mesmo em situações de nervos à flor da pele eles conseguem sentar e conversar. O filme escancara propositalmente questões de raça e deixa vazar de forma não intencional questões de gênero.
As tomadas aéreas permeiam o filme do começo ao fim. Dá uma sensação de que alguma ameaça paira no ar. E esse perigo está à espreita, prestes a cair sobre os protagonistas ou sobre o mundo. Os ambientes são vistos do alto, bosques, jardim, o interior da casa e o planeta. Este último enquadramento é outro ponto curioso. Ele leva o espectador a acreditar na iminência de uma tragédia global. Mas quando retorna ao nível terrestre é sempre um retorno ao ambiente dos personagens. É como se o planeta fosse os Estados Unidos. Um complexo de colonizador das potências politico-econômicas que se colocam como o centro do mundo.
A ameaça nunca se corporifica. Os personagens e o espectador não sabem de onde os ataques partiram e nem qual é o objetivo de quem está por trás das ações. Há apenas especulações. Talvez seja o Iraque, ou a China, ou uma aliança de vários inimigos dos Estados Unidos. Enquanto se especula, aviões caem, carros com direção autônoma se lançam como kamicases em acidentes rodoviários e ataques supersônicos chegam de hora em hora. Não é a toa que as especulações apontem para os países não-ocidentais. Os Estados Unidos vivem uma guerra tecnológica com a China há anos. O governo Biden restringiu na primeira década de 20 deste século a venda de chips de computação avançados para o país asiático, alegando questões de segurança nacional. O que está em jogo, na verdade, é a posição de poder na qual os Estados Unidos se agarram desde a segunda grande guerra. É a perda do posto de maior potência econômico-militar que os aflige o tempo todo. É esse temor do avanço tecnológico oriental e um consequente domínio sobre o ocidente que sustenta a história de Leave the world behind. Por isso não importa muito exibir a fonte dos ataques. Podem ser os russos, os chineses, a Coreia do Norte, o Irã, Cuba. Tanto faz. Qualquer um deles serve. A tecnologia tão temível na ficção científica de Hollywood, vale lembrar, é produzida dentro dos Estados Unidos, da bomba atômica à inteligência artificial. Mas o medo norte-americano nesta história não é das tecnologias bélicas construídas em seus porões. O que os assustam é perder o monopólio da produção e uso dessas ferramentas.
O roteiro não se preocupa com um daqueles fechamentos tradicionais. A história parece ter um final em aberto. Mas também não importa como termina e sim como se chega nesse final. Um dos pontos altos do filme é a obsessão da filha do casal branco pela série Friends (1994 - 2004). O mundo está acabando lá fora e o que ela quer mesmo é ver o último episódio. Talvez seja a personagem mais absurda e mais realista do roteiro. Vivemos no alto desses anos 20 uma crise climática sem precedentes, com enchentes mortais, incêndios, ondas de calor e cavamos a terra cada vez mais fundo em busca de minérios para produzir chips e baterias para alimentar nossas sociedades altamente computadorizadas. Depois escrevemos um roteiro sobre o fim do mundo, filmamos com um elenco cheio de estrelas e uma direção competente. Nos sentamos na frente da tela e assistimos chocados o mundo dos personagens ruir. Torcemos por um final feliz. Acreditar que eles existem é nosso remédio cotidiano, como faz Rose. Você não se sente ótimo quando Neo finalmente derrota a Matrix? Rose se sente ótima ao se anestesiar com Friends. De anestesia em anestesia vamos tocando a vida, fechados em nossos bunkers de entretenimento, lutando junto de Amandas e Neos, enquanto desmorona o mundo lá fora.
O Mundo Depois De Nós
Título original: Leave The Word Behind
Ano: 2023
Duração: 2h e 21min.
Direção e roteiro: Sam Smail
Elenco principal: Julia Roberts, Ethan Hawke, Mahershala Ali e My'Hala Herrold
Origem: EUA