09/03/2024

A dádiva dos mortos em A Sociedade Da Neve de Juan Antonio Bayona

O belo filme do diretor espanhol, com um elenco pouco conhecido e montanhas inóspitas como antagonista, narra uma história trágica na qual a morte se transforma em dádiva.


Eduardo Barbosa ▪ 09 mar 2024


Em 1972 um avião saiu de Montevidéu, no Uruguai, levando 45 pessoas para uma competição de rugby no Chile com jogadores, seus amigos. Mas o voo 571 não completou a rota programada. Caiu entre as montanhas cobertas de gelo dos Andes. Parte dos passageiros morreu. Outros sobreviveram. É sobre estes últimos que a história de A sociedade da neve se debruça.

O local da queda é inospitalidade em estado bruto. Sem vegetação. Sem vida animal. Apenas neve a recobrir quilômetros a perder de vista. Não há  como estabelecer contato com o mundo fora das montanhas porque os equipamentos de comunicação do avião ficaram espalhados por locais de difícil acesso. É a partir da queda que o espectador começa a criar laços mais intensos com os personagens na tela.

O grande trunfo dessa história é que ela comove por um ponto que a maioria dos filmes mais ou menos similares não conseguem. Há no cinema um sem-fim de histórias de alpinistas, aventureiros, exploradores de montanhas, enfrentando toda sorte de intempéries e infortúnios. No caso destas obras, ir até a montanha, apesar dos riscos, é um objetivo dos protagonistas. Quase um flerte com a morte. Impulso ao inanimado. A montanha em gelo. Inabitável. Retorno ao nada. Pura pulsão de morte. Conquistar seu pico é desafiar os limites da vida convidando a morte para um baile. Mas A sociedade da neve inverte estes objetivos. O único desejo pulsante é de vida. Ele vibra furioso em cada um dos personagens. Eles nunca desejaram a montanha. É a distância do pico que os atrai.

Juan Antonio Bayona se agarra ao instinto de vida para estruturar o roteiro do filme. Os sobreviventes sabem de seu destino. Morrerão. Mas existe vida demais dentro deles para se curvar à inexorabilidade desse destino. Eles se unem para facilitar um resgate. Tentam criar um meio de comunicação a partir dos restos do avião. E, finalmente, se organizam para decidir se um corpo humano é alimento sagrado ou profano. As cenas de partilha são de alto impacto. Alguns deles recusam o alimento. Suas crenças religiosas entram em conflito com a nova forma de sobrevivência.

Mas acaba emergindo ali uma nova sociedade na qual as crenças precisam ser repensadas. Surge um novo contrato. Em bilhetes pós-mortem os companheiros de viagem entregam o próprio corpo para partilhar entre aqueles que ainda resistem à montanha. É a dádiva dos mortos. O impulso de vida transcendendo a morte. O ingerido não é carne, é a esperança concedida na dádiva.

O elenco de A Sociedade da Neve, apesar de não ser conhecido mundialmente, é afiado. O resultado é um filme repleto de personagens convincentes e dramas quase palpáveis na tela. Os diálogos são bons e embora estourem vez ou outra algumas frases de efeito as interpretações conseguem neutralizar-lhes um efeito piegas. Em linhas gerais, o belo e trágico filme de Bayona é um ensaio dramático sobre a resiliência humana.



A Sociedade Da Neve

Título original: La Sociedad De La Nieve
Ano: 2023
Duração: 2h 24min.
Direção: Juan Antonio Bayona
Roteiro: J. A. Bayona, Nicolás Casariego Córdoba, Jaime Marques e Bernart Vilaplana
Elenco: Enzo Vongrincinc, Agustín Pardella, Matías Recalt, Tomás Wolf, Diego Vegezzi, Esteban Kukuriczka
Origem: Espanha, Uruguai