A cor púrpura é mais uma daquelas histórias que levam o espectador ao limite do suportável. A tese do filme de Blitz Bazawule, inspirado no romance de Alice Walker publicado em 1982, é que as mulheres em uma sociedade racista nunca estão a salvo. Se a violência lá fora é monopólio dos brancos contra negros, dentro de casa os homens pretos corporificam a violência do patriarcado contras suas mulheres. Acompanhar as agruras dessas mulheres oprimidas por quem deveria se opor ao violento mundo de dominadores e dominados é uma tarefa árdua.
No início há uma cena em que um homem toca um banjo sobre um cavalo. Ele passa embaixo de uma árvore na qual duas meninas brincam e cantam sobre um galho de árvore. Os acordes dos dedos do cavaleiro acompanham as vozes das garotas. É perfeitamente harmonioso. Os números musicais de A cor púrpura são construídos sempre com esta mesma toada. A música nunca aparece na tela do nada. Um martelo batendo em uma tábua, marretas abrindo estradas, funcionam como os primeiros acordes de alguma música a surgir. É bem construído. E é assim que Blitz Bazawule trabalha na nova adaptação do romance de Alice Walker. Um musical. Mas se a música se origina de relações harmoniosas, o mesmo não se dá com as relações de gênero. Homens e mulheres vivem em uma sociedade regida por uma violência atroz na qual o feminino é dominado pelo masculino.
Na trama, Celie (Fantasia Barrino) vive em uma casa com a irmã e o pai. Ela trabalha com os serviços domésticos e tem bebês que são tomados pelo pai no momento do parto. O espectador fica sem saber durante boa parte do filme de quem são os filhos de Celie. Isso porque o roteiro decidiu suavizar a relação de abuso sexual entre pai e filha nesta nova versão. Na obra de Steven Spielberg de 1985 isso já ficava claro logo no início. Se Celie leva uma vida dura na casa do pai, passa por maus bocados na casa do homem com o qual o pai a obriga a se casar, Mister (Colman Domingo). De submissa ao pai ela passa a submissa do marido. Mister, como o pai de Celie, pratica com ela toda sorte de violência: física, sexual, psicológica. E quando a irmã Nettie (Halle Bailey), também abusada pelo pai, vai morar com eles, ele também tenta violá-la. Mas Nettie reage, é agredida e expulsa de casa. E de sofrimento em sofrimento toca-se a história da protagonista.
As personagens são divididas em dois grupos. Há as mulheres submissas e as mulheres que não se curvam aos homens. Celie e Nettie são as mais castigadas. Sofie (Danielle Brooks) e Shug (Tahaji P. Henson) são as resistentes, embora também sofram em algum momento. As duas últimas são motivo de inveja e admiração da protagonista. Há outra suavização em relação ao longa de 1985. Naquela versão, Celie se apaixona por Shug com direito a beijos e intimidades. O novo roteiro de 2023 reescrito por Marcus Gardley é bastante tímido. Não está tão interessado em temas que alguns poderiam considerar polêmicos demais.
É um filme duríssimo de ser assistido. Celie sofre do início ao fim, sem descanso. É preciso muito estômago para suportar as duas horas de duração. Mas é preciso continuar até os últimos minutos para saber se ela vai conseguir se livrar da submissão ao marido e das violências domésticas e se vai reencontrar a irmã que desapareceu desde a expulsão de sua casa. O formato do roteiro segue a jornada do herói. A protagonista cruza um caminho cheio de atribulações até tornar-se outra.
O filme diz muitas coisas em suas subcamadas. Uma delas é como o oprimido, homens negros, pode tornar-se um opressor. A história corre em uma época na qual o racismo era institucional. Mas a trama quer pôr sob holofote a violência do patriarcado que faz qualquer homem ser violento, seja ele branco ou preto. Qualquer homem dentro dessa estrutura é violento. Não há caminhos para um sujeito masculino afável. A submissão das mulheres é prioridade para todos eles. O vilão no roteiro, portanto, não pode ser apenas um homem. É o sistema que os ensinam esse comportamento. Mas não é o sistema que aterroriza Celie cotidianamente. Seu algoz tem um nome. É o marido, Mister.
O arco de Mister segue os passos do romance de Walker. E o seu desfecho é tão doce que beira o intragável. Como uma mulher que foi brutalizada de todas as formas possíveis por esse homem pode aceitar a relação harmoniosa do final da história? Pode parecer uma atitude nobre da parte dela, mas é pouco digerível. Parece que tanto o livro quanto o filme querem dizer que o perdão genuíno supera qualquer sofrimento causado por alguém que é um produto de uma sociedade machista violenta. De novo, o vilão não é Mister. É o mundo machista que o criou. É bonito na teoria, mas fica pouco convincente. Adocicado demais. Muito disneilândico. Spielberg apresentou um outro desfecho para Mister. Naquela versão, o marido repara seus erros e não procura por uma reaproximação com Celie. Eles não se tornam amigos. Faz mais sentido. Superar os traumas de uma relação violenta não significa tornar a conviver com o agressor.
De modo geral, esta refilmagem mais retira do que acrescenta ao original de 1985. Exceto as cenas de Shug Avery, os números musicais em sua maioria parecem muito artificiais. É perceptível que a voz para as canções foram inseridas depois das gravações de cenas. Não funcionam. E o tom do primeiro ato é solar demais para uma história tão cheia de sofrimentos. Talvez por isso parte da violência retratada no original desaparece. Outro problema é tentar fazer o espectador pensar que os números musicais são imaginativos, fantasias de Celie, retira a magia das cenas musicais. Então, entre ver um clássico bem contado e a novidade que o revisita, é melhor ficar com o primeiro.
A Cor Púrpura
Título original: The Purple Color
Ano: 2023
Duração: 2h 20min.
Direção: Blitz Bazawule
Roteiro: Marcus Gardley
Elenco principal: Fantasia Barrino, Colman Domingo, Halle Bailey, Tahaji P. Henson e Danielle Brooks
Origem: EUA