21/02/2024

Zona De Interesse (2023) incomoda e instiga-nos a pensar sobre a bestialidade humana

A proposta de criar um filme sobre a vida de uma família nazista sob a forma de uma ficção etnográfica pode entusiasmar uma parcela de espectadores acostumados com os debates acadêmicos e filosóficos. Para leitores e estudiosos de Hannah Arendt, por exemplo, não é difícil aplicar ideias como "banalidade do mal" ao filme de Jonathan Glazer. Zona de interesse pode ter muitos significados para as classes intelectuais e dizer bem menos do que pretende para os espectadores comuns.


Eduardo Barbosa ◼ 21 FEV 2024



A maioria dos filmes sobre o Holocausto trazem as vítimas para o centro da narrativa. Já vimos, portanto, dezenas de filmes nos quais o horror do nazismo é retratado do ponto de vista dos perseguidos pelo regime. Na década de 90, por exemplo, Clive Owen protagonizou um desses filmes, Bent (1997), dirigido por Sean Mathias. Seu personagem é um cativo do regime nazista. Ao ser transportado para um campo de concentração ele passa por um casal à beira do caminho fazendo um piquenique. A marcha dos condenados não os comove. Jonathan Glazer parece ter colhido exatamente esta cena para destrinchá-la em Zona de interesse. É apenas esse tipo de personagem que aparece em seu longa-metragem. A trama desenha o retrato de uma família "eleita", os escolhidos do terceiro reich. Histórias sob esta perspectiva não é comum no cinema. Glazer tenta distanciar seus protagonistas do espectador. A câmera os enquadra de longe. Sem plano fechado. Nada de close-ups. Nada de laços de intimidade entre a família nazista e quem os assiste. O importante não são suas expressões faciais, detalhes de suas emoções. É o ambiente. Então, há uma boa quantidade de registros abertos, grandes bocados de cenários.

Hedwig Hoss e seu marido Rudolf Hoss levam uma vida com a qual sempre sonharam. Ela cria os filhos em um casarão de campo. Mantêm um belo jardim repleto de flores e uma horta com muita variedade de plantas. Ele trabalha o tempo todo. É comandante do campo de concentração de Auschwitz, que fica do lado da casa. A família se farta com os pertences dos judeus que chegam ao campo. Casacos de pele. Batons. Há uma naturalidade horripilante em cena. Paira sobre a família uma atmosfera brutal de frieza, enquanto os clarões do fogo dos fornos de Auschwitz invadem as janelas do casarão.

Não se vê um único rosto daqueles que agonizam do outro lado do muro. A família e o espectador apenas ouvem seus sons e os tiros a abatê-los. Indiferença e horror, respectivamente. O mais incômodo é o fato de não haver nenhum monstro na casa. A face do mal com a qual nos deparamos é demasiadamente humana. Uma mãe e um pai construindo um lar para seus filhos. O Lar ideal da promessa nazista. Os dramas do casal são todos familiares. Comuns, banais. O filme é repleto de acontecimentos prosaicos. As brincadeiras das crianças, enamoramentos juvenis, piqueniques em família, diversão na piscina, as viagens do pai, a chegada da avó, a mudança de casa. Um contraste feroz na normalidade do casarão com os horrores de quem sofre na vizinhança. De onde vem tanta frieza? A filosofia política tem respostas.

Thomas Hobbes (1588 - 1679) dizia ser o homem o lobo do homem e nossa convivência pacífica se deu partir de uma espécie de "contrato social" para domesticar nossos instintos. A partir desse acordo uma instituição tomou para si o que Max Webber (1864 - 1920) chamou de monopólio da força e da violência, vetando-se aos indivíduos o uso da agressão como forma de mediação de conflitos. Mas nosso instinto-lobo não foi extirpado, apenas reprimido. Portanto, há um devir-lobo constitutivo do ser humano. Havendo um estímulo ele emerge. A frieza da família Hoss é uma manifestação desse eu-predador vazando pelas rachaduras de uma civilidade em ruínas. No instinto bestial da fera humana não há atrocidades no outro lado do muro. Só se enxerga a Grande Alemanha ariana, terra que mana leite e mel para uma raça pura e cruel.

Zona de interesse faz nosso estômago embrulhar. Gera um incômodo quase insuportável. O retrato na tela não é de uma outra espécie. É como um espelho refletindo aquela nossa parte que precisa ser mantida trancafiada e longe da luz do sol. E ela está ali na nossa frente, solta e livre. 

Apesar dos acertos no filme, parece faltar alguma coisa. As atuações são ótimas. O trabalho com o som e a fotografia também. Já o roteiro não tem uma construção tradicional de personagens e trama. Glazer calibra bem os protagonistas para não permitir conexões emotivas positivas com o espectador, mas não trabalha com um movimento de queda nem ascensão. Tudo se mantêm mais ou menos igual até os créditos finais subirem. É como uma música inteira sendo tocada apenas com uma ou duas notas. Se a intenção é criar um mal estar contínuo diante de nossa capacidade de tornar-mos desumanos, o filme desenvolve bem a proposta. É como uma etnografia fictícia para um ensaio antropológico. Funciona muito bem para uma plateia acostumada com debates filosóficos e acadêmicos, que conhece Hannah Arendt e sabe o significado de termos como "banalidade do mal". Para os demais mortais, grosso da população do mundo, talvez as cenas de um ensaio antropológico não produza efeito algum. O mal chamado nazismo, ensina Quentin Tarantino em Bastardos inglórios (2009), precisa ser definido muito bem como vilão para depois ser descartado. É o cinema-alívio. Catarse. Nos dá uma sensação de controle sobre o mal. A sensação é falsa. Mas talvez seja bem mais pedagógica. É esse o cinema das massas. De que adianta um belo manifesto anti-extremista rebuscado ser eloquente apenas para um pequeno grupo de intelectuais se as massas são mais porosas aos discursos extremistas simplistas? O líder nazista, vale lembrar, foi inserido democraticamente na política pelo voto da população alemã, não entrou de assalto. E por volta de 1919 já bradava para o país que o problema eram os judeus, a raça impura que tirava as oportunidades dos alemães com sua ganância. Isto é, a linguagem do bom e do mal é facilmente assimilável. Nós contra eles. As massas logo compreendem. Então, diante da mensagem e da forma  de Zona de interesse convêm a pergunta: é eficiente para quem?




Zona De Interesse

Título original: The Zone Of Interest
Ano: 2023
Duração: 1h e 46m.
Direção: Jonathan Glazer
Roteiro: Jonathan Glazer, Martim Amis
Elenco principal: Sandra Huller, Christian Friedel
Origem: Reino Unido, Polônia