Em 1979, com um orçamento baixo e um roteiro a transbordar de cenas de ação, George Miller lançou as sementes de uma franquia icônica do cinema popular. Mad Max (1979), o primeiro capítulo de uma longa história, narrava as desventuras de um policial tentando se equilibrar entre a aplicação da lei dentro de seu território e a pura vingança. A trama girava em torno de um homem às voltas com uma gangue de motoqueiros violentos e incluía muitos cenários rodoviários, perseguições em alta velocidade, fumaça, explosões e violência. Apesar de ser classificado como uma distopia, o único elemento a dar sustentação ao mundo distópico do longa-metragem era essa gangue pairando acima das instituições do Estado e deixando um rastro de destruição por onde passa. O instinto humano de violência era o combustível, portanto os aspectos psicológicos dos personagens eram centrais no desenvolvimento da trama. E o policial Max Rockatansky, estruturado a partir de um arco de ruína completo e interpretado por um Mel Gibson em início de carreira, partia para uma caçada justiceira sangrenta quando essa violência lhe retirava a companheira e seu filho. Foi um sucesso de bilheteria. O filme teve um custo de 400 mil dólares e uma receita de 100 milhões de dólares.
Miller apresentou Max pela segunda vez no cinema, em uma nova jornada, dez anos mais tarde em Mad Max 2: O Guerreiro da Estrada (1981). Ele começava a construir um mundo distópico no qual um ambiente inóspito e com escassos recursos naturais para a vida humana definia os personagens. A violência humana culminou em grandes guerras. Nações caíram. O planeta foi arrasado e tornou-se árido. E as gangues de estrada se multiplicaram. Nesse mundo caótico, todos viraram andarilhos sobre rodas. A única moeda é a gasolina e grupos rivais lutam até a morte por cada gota que encontram. É tentando sobreviver nesse ambiente hostil que Max se depara com uma refinaria no meio do deserto. Enquanto planeja um ataque para encher o tanque de seu carro, os habitantes do local são acossados por uma gangue disposta a tomá-lo sob qualquer custo. Max se torna aquele a salvar o grupo da fúria dos invasores. Nesta sequência, os cenários ainda mostram resquícios de vegetação e as cenas começam a ficar empoeiradas. Miller trabalhou com um orçamento mais robusto devido ao sucesso de 1979 e o filme foi eleito pela Variety como o melhor filme de ação da história do cinema.
A estrutura destes dois primeiros filmes se apóia na fórmula do western. Os cavalos são substituídos por motocicletas e carros esportivos. O protagonista vaga por grandes espaços abertos em busca de vingança ou justiça. O ponto principal é o mesmo, um homem é instado a salvar um grupo dos ataques de um inimigo violento. São elementos típicos de um faroeste clássico. Essa reformulação estava em alta durante este período. A estética western havia perdido popularidade, mas a estrutura narrativa desse gênero ainda atraía o público. Roudy Herrington seguiu esse mesmo caminho em Road House (1989), por exemplo.
Quando dividiu a direção com George Ogilvie no terceiro filme da franquia, Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (1985), George Miller estabelecia ali a forma definitiva de um planeta arrasado pela agressividade e predação humana. Desertificação total. Mas é um filme a destoar dos anteriores. O longa se perde em uma estrutura bagunçada, com um segundo ato inchado demais, arrastado, se desconectando das outras partes. O afastamento de seus antecessores é quase completa. Surge uma grande cidade movida a gás. A fauna voltou a existir com camelos e centenas de porcos. Novas forças antagonistas surgem e as gangues de motoqueiros desaparecem. A vilã é interpretada por uma popstar, Tina Tuner. A estrutura é de um filme de artes marciais e a maior parte da ação se passa dentro de uma cidade que Max precisa entrar para destronar um tirano. Parece um diálogo estreito com as narrativas de invasões e conquistas do Velho Testamento. A jornada de Max é messiânica, tem profecias, sacrifícios e provações no deserto. Aliás, a opulência visual desse ambiente de provações nasce nesse momento como o grande plano de fundo dos filmes subsequentes. Miller parecia tatear o universo de Mad Max para, finalmente, triunfar com o próximo lançamento.
Esse retorno aconteceu trinta anos depois com Mad Max: Estrada da Fúria e tornou-se o grande filme de ação de 2015. Arrebatou o público e a crítica e ganhou seis das dez indicações ao Oscar de 2016. Trabalhando novamente com uma estrutura de western sobre rodas, Miller apresentou um filme cheio de acertos. O deserto é onipresente. Os demais ambientes, a Cidadela, a Vila da Bala e a Vila da Gasolina, fazem sentido dentro da trama. A história gira em torno da personagem Furiosa (Charlize Theron) fugindo com mulheres escravizadas parideiras mantidas em cativeiro por um tirano que comanda uma vasta região do deserto ao exercer controle sobre combustíveis, água natural e armas. Na fuga ela esbarra com Max (Tom Hardy), um andarilho do deserto feito prisioneiro dos guerreiros da Cidadela. Seguem juntos por um caminho de guerra. É um espetáculo visual de perder o fôlego e nuvens e mais nuvens de poeira. Miller finalmente encontrou o tom da estrutura narrativa da saga, a estética perfeita na direção de arte e no figurino, e personagens lapidados com precisão.
Este filme de 2015 dá o pontapé para Furiosa: Uma Saga Mad Max (2024). O único da franquia sem o personagem-título da saga. O enredo gira todo em torno de uma protagonista feminina, partindo de sua infância até a juventude. É uma história de formação. Furiosa (Alyla Browne) vive em um oásis povoado e escondido no deserto, até um grupo de motoqueiros canibais chegar. Furiosa contra-ataca para proteger-se, é capturada e sequestrada e sua mãe se joga em uma perseguição alucinante para salvá-la. Miller parece ter relido o roteiro de seu primeiro capítulo da saga para o argumento desse novo episódio. O protagonista vive tranquilamente com sua família até um grupo de motoqueiros levar seu mundo ao colapso. Trata-se de Max. Trata-se de Furiosa. O arco da personagem é clássico de uma estrutura de jornada do herói. Furiosa leva uma vida pacata em um vale aprazível. Forças antagonistas desestabilizam essa vida tranquila. Ela entra em um redemoinho de quedas. Transforma-se ao longo do processo, dando início a um arco ascendente. Torna-se uma guerreira e parte em busca de um retorno ao seu mundo perdido.
O espectador conhece o primeiro vilão do filme, Dementus, interpretado por Chris Hemsworth. Ele é um carismático líder de motoqueiros violentos. O interesse por Furiosa cresce quando o grupo descobre sua origem e farão de tudo para fazê-la guiá-los ao vale fértil onde nasceu. A construção do personagem feita por Hemsworth é um pouco vacilante. Transmite um ótimo grau de seriedade no início do primeiro ato e se desmancha completamente no decorrer dos outros dois atos, tornando-se parecido com os antagonistas do filme de 1979, agressivo, jocoso e caricato. É o responsável pelo arco de ruína de Furiosa, retirando-lhe tudo, a mãe, o lar, a liberdade. Logo, o que move a protagonista é uma sede avassaladora de vingança contra Dementus. E para atingir seu objetivo ela precisa se aliar ao oponente de seu captor. Seus primeiros estágios de vida são como o nascedouro de um anjo da morte. chega à juventude com esse desejo em ebulição. A segunda fase da história apresenta uma protagonista já transformada e com desejos vingativos em ebulição. Anya Taylor-Joy tem um domínio total da personagem. Sua Furiosa, com poucas falas, se expressa através de olhos intensamente comunicativos, refletindo através deles suas intenções.
Várias questões interessantes atravessam o roteiro nesse pedaço da saga. A mocinha não precisa mais ser salva por um homem. Em Estrada da Fúria é Max quem lhe conduz de volta à Cidadela no ato final. Ele é o messias a salvar fracos e oprimidos em todos os outros quatro filmes anteriores. Deus é um masculino onipotente até a entrada da jovem Furiosa na franquia. Essa tomada de rédeas da mulher em relação ao próprio destino é uma tônica do feminismo do século 21 que parece ter sido incorporada pelo cineasta. Enquanto desconstrói o mito do messias masculino em seus capítulos finais, a saga estabelece a criação de um outro mito.
Mais do que sobreviver ao mundo violento do deserto, os protagonistas buscam um paraíso perdido. E mesmo quando já o tem, eles partem em busca de outro. É o que ocorre com o jovem povoado de um vale verde em Além da Cúpula do Trovão (1985). Trocam um oásis por um mundo em ruínas porque acreditam em uma profecia sobre um mundo melhor. É como se Miller reinventasse o mito bíblico da Terra Prometida. Max é um Moisés conduzindo um grupo que se torna seu povo. Furiosa, como um novo Moisés a libertar os hebreus da tirania de Faraó, conduz as escravas de Immortan Joe por um deserto de provações para seu paraíso de origem. Os guerreiros da Cidadela já estão em um oásis, embora sob o julgo de um governante violento, mas anseiam por um paraíso de heróis chamado Valhalla.
O paraíso mitológico é estruturante da saga. Permeia passados, presentes e futuros. Está nas lembranças da protagonista em Estrada da Fúria, sustentando toda a sua jornada heróica de fugitiva pelas areias de Wasteland. Se materializa sob a forma de um vale de natureza pujante, seja na Cidadela ou no refúgio das crianças de Além da Cúpula do Trovão. E delineia-se no futuro dos fiéis jovens guerreiros suicidas de Imortal Joe. A grande motivação dos personagens na saga como um todo é conquistar ou retornar para uma Terra Prometida que só existe em discursos messiânicos. É uma promessa única com a qual todos angariam seguidores fiéis, de Max a Furiosa, passando por Immortan Joe e Dementus. Miller até topou desconstruir a ideia do salvador masculino presente na maioria de seus filmes, mas não abre mão do eterno retorno ao Éden. Estes personagens não querem proteger os espaços nos quais outras vidas naturais prosperam. O messias nunca é o vale verde, é sempre humano. Deste modo, apesar de parecer ser uma crítica ao instinto de predação humana a transformar o planeta em um lugar inóspito, Mad Max insiste na ideia de uma natureza pujante a ser conquistada para servir com seus "recursos naturais" a vida humana. O ser humano metamorfoseando-se em árvore é um castigo da mocinha contra o vilão. Aquilo que poderia ser uma adaptação harmoniosa do humano ao verde é construído de forma a aterrorizar.
Eduardo Barbosa ▪ 10 jun 2024
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Furiosa: Uma Saga Mad Max
Título original: Furiosa: A Mad Max Saga
Ano: 2024
Duração: 2h 28min.
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller e Nick Lathouris
Elenco principal: Anya Taylor-Joy, Chris Hemsworth, Tom Burke, Alila Browne e Lachy Hulme
Origem: Austrália, EUA.
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