Guel Arraes já comandou adaptações bem sucedidas de obras literárias para o cinema. Um exemplo é Liz Bela e o Prisioneiro (2003) adaptado do livro de 1964 escrito por Oman Lins. Já O Auto da Compadecida (2000), criado a partir da peça de teatro publicada por Ariano Suassuna em 1955, é uma das joias do cinema brasileiro. A boa recepção desse longa-metragem marcante dos anos 2000 foi um dos combustíveis para a apresentação de uma sequência em 2024. Vários fatores conduziram a receita de sucesso desses dois filmes. A mistura entre comédia e drama tem a medida perfeita para equilibrar as emoções provocadas no espectador. A direção de arte apresenta cenários convincentes o suficiente para tornar as histórias críveis e magnéticas. As atuações entram em harmonia com os ambientes e as narrativas a partir de corporalidades bem construídas e os diálogos musicais fazem fluir a narrativa como em um canto executado à perfeição. A dança dos corpos e vozes na tela exercem uma poderosa atração e capturam com facilidade o olhar do espectador.
Grande Sertão (2024) também é uma adaptação conduzida por Arraes e foi feita a partir da labiríntica obra Grande Sertão: Veredas, romance escrito por Guimarães Rosa e publicado em 1956. No roteiro de Jorge Furtado e Guel Arraes sai o ambiente árido do sertão de Guimarães Rosa e entra uma comunidade periférica toda cercada por altos muros. A mudança é arriscada. Há um conflito crescente entre policiais e bandidos, embora haja negociações entre eles. Surge uma guerra entre essas duas forças locais provocada por um bandido insurgente contra seu líder. Isto já se mostra como uma história intrincada e cheia de nuances e apenas com ela o filme estaria completo. Mas faltariam dois personagens importantes do livro, o protagonista e a figura misteriosa pela qual ele se apaixona. O roteiro insere um encontro ao acaso entre duas crianças, Riobaldo e Diadorim, em um tentativa de juntar as duas histórias em uma grande narrativa e se aproximar da obra literária. Não funciona. O tal romance corre às margens e se mostra incapaz de sensibilizar o espectador. O empecilho principal a impedir o relacionamento amoroso entre eles não é crível.
A mudança do cenário da história original não levou em conta a estranheza soante de uma cidade sem sol e nublada e cheia de poças de água, com uma coloração escurecida, a ser chamada o tempo todo pelos personagens de Sertão. Deste não há qualquer vestígio. Embora haja muita violência, é a mesma violência vista cotidianamente em noticiários brasileiros sobre as periferias de grandes metrópoles. O nome soa apenas como uma tentativa desesperada de fazer referência ao livro e não convence.
Riobaldo (Caio Blat) cresce e torna-se professor em uma escola da comunidade. Se encontra novamente com Diadorim, capanga de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), chefe dos bandidos de Grande Sertão. É quase uma piada tentar fazer o espectador acreditar no conflito entre os dois. Diadorim se disfarça de homem e Riobaldo não quer ter uma relação homossexual com ele, embora o ame. É impossível comprar a proposta do filme. Diadorim, interpretado por Luisa Arraes, poderia convencer uma plateia de uma peça de teatro, no cinema parece falso demais. Não há nenhum mistério quando o roteiro revela o verdadeiro gênero da moça. E esta é a grande surpresa do livro de Guimarães Rosa. Há uma tentativa de bissexualizar a personagem para tentar convencer a qualquer custo o espectador, mas é impossível ignorar Diadorim como uma mulher. O final da história de Riobaldo com ela não é bem amarrada e torna-se inconvincente. O professor transforma-se em pouquíssimo tempo em um exímio bandido por um amor não declarado.
Falta um trabalho de preparação com a interpretação das duas crianças da primeira fase da história. Elas parecem ler suas falas e isso causa uma boa dose de desconforto logo no primeiro ato do filme. Soma-se ao problema a estrutura dos diálogos do livro mantida no roteiro. Foi uma péssima ideia. Os personagens do romance são homens da terra. Rosa conviveu uma temporada com vaqueiros para extrair dessa experiência o típico dialeto sertanejo de seu romance. Não faz o menor sentido ouvi-los na boca de habitantes de um ambiente urbano. A estética de Grande Sertão: Veredas só faz sentido no contexto daquele ambiente do livro. O resultado da recriação de Arraes e Furtado são falas truncadas e deslocadas dos personagens do filme.
Contudo, a marca de Guel Arraes presente em seus filmes anteriores de comédia é notável. As atuações são exageradas e há algum toque de humor. Mas é tudo exagerado demais para esta história. Este é um filme a apontar para todos os lados sem atingir nenhum alvo. O romance entre os protagonistas é insosso devido ao seu impeditivo inverossímil. O humor a surgir aqui e ali não tem sustentação. Os dramas dos personagens secundários não emocionam por causa de atuações prejudicadas por diálogos que não funcionam na tela, são horrorosos. E algumas cenas são grotescas, como a personagem a correr em câmera lenta ao saber da morte da filha. O longa inteiro parece não ter sido escrito para o cinema e sim para o teatro. Talvez fosse uma boa peça de teatro. Como longa-metragem é uma grande coleção de péssimas escolhas. Há poucos pontos positivos no filme. Um deles é a fotografia com enquadramentos cheios de estripulias a retirar pontualmente a atenção da história capenga e da construção horrorosa de personagens. A atuação de Eduardo Sterblitch como o escorregadio Hermógenes é divertida e interessante. O resto é um grande desastre.
Eduardo Barbosa ▪ 23 jun 2024
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Grande Sertão
Ano: 2024
Duração: 1h 48min.
Direção: Guel Arraes
Roteiro: Guel Arraes e Jorge FurtadoElenco principal: Caio Blat, Luisa Arraes, Eduardo Sterblitch, Rodrigo Lombardi e Luís Miranda
Origem: Brasil
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