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21/09/2024

Dominação e submissão, morte e sexo: as pulsões de criação e destruição em Tipos de gentileza (2024), de Yorgos Lanthimos

Tipos de gentileza reúne três histórias diferentes com o mesmo elenco e um fio condutor em comum. Mesmo apresentando personagens e tramas diferentes, alguém sempre entrega a própria vida para atender as demandas de um outro. Este sacrifício é o tema das narrativas.  Há assassinato consentido, carne humana transformada em alimento e morte auto-induzida. Lanthimos não poupa o espectador. Altas doses de violência gráfica pipocam na tela junto com cada um desses tipos de ‘gentileza’ condimentados com pitadas de humor ácido.

Não é por acaso que a música escolhida para abrir o longa-metragem seja Sweet Dreams, do Eurythmics. A letra dá o tom do que espera pelo espectador na tela. Os capítulos apresentam histórias de submissão e dominação, como sugere a canção. Transbordam morte e sexo. Isso estoura na tela quando a música para. Mas a trilha sonora a atravessar o conjunto de contos é tão eloquente quanto a canção-tema. Tão dura quanto as cenas explícitas de dedos decepados e corpos atropelados. Um som agourento nos tímpanos. Martelam os ouvidos, pulsam, causam incômodo. Um abutre a unir a trinca de contos enquanto anuncia o cheiro de cadáveres.

Em A morte de R.M.F, um homem rico contrata pessoas para simularem acidentes de trânsito. A vítima do acidente recebe determinada quantia para deixar-se ser atingida por um carro em alta velocidade. Já o agente doloso vive sob uma espécie de contrato no qual o chefe define toda a sua rotina diária. Quanto maior o grau de submissão, mais benefícios materiais e sexuais. O empregado só recebe sua cota de amor do patrão quando cumpre com sua obrigação de produzir um atropelamento fatal. A ênfase dessa parte do filme está nas relações de poder entre quem tem capital e quem não o tem. O desejo por uma vida material opulenta supera as adversidades de um trabalho repleto de abusos, sejam eles quais forem. No bordel da vida rica todos prostituem-se.

A segunda trama, R.M.F está voando, gira em torno do retorno de uma esposa desaparecida. Seu comportamento diferente faz o marido acreditar na possibilidade de uma substituta com o mesmo corpo de sua companheira. O roteiro joga o espectador em um emaranhado de dúvidas. Para provar a hipótese de usurpação, que ninguém acredita, ele pede como refeição algumas partes do corpo da mulher. Ela lhe entrega o prato perfeito. Um dedo. O fígado. Ele é diagnosticado com psicose. Isso explicaria suas desconfianças. Mas essa esposa é estranhamente submissa demais, gentil até a morte. No entanto, resta tomá-lo como o vilão da história. Se o primeiro capítulo discute a dominação do homem pelo capital, este aborda as várias faces da violência doméstica contra mulheres. Não importa quão gentil seja uma mulher com um homem violento. O resultado será um corpo estendido no chão de uma cozinha em algum momento.

O filme termina com R.M.F come um sanduíche. Se o grau de bizarrice já estava alto, sobe para níveis estratosféricos. Há uma seita na qual os membros são proibidos de se relacionarem sexualmente com pessoas de fora. Os externos estão contaminados e o contato sexual com eles torna os fiéis impuros. Há rituais de purificação até o desfalecimento em saunas e provas de descontaminação nas quais uma liderança prova a pele suada de alguém com a língua. A pessoa é expulsa da comunidade se o procedimento não atinge o efeito desejado. A protagonista, membro da seita, corre em alta velocidade com seu carro esportivo de cidade em cidade. Procura por uma tal escolhida com o dom de trazer vida aos mortos. No porta-malas leva galões com a santa água lacrimal produzida pelos seus líderes. Historicamente, as lágrimas têm um papel importante dentro de algumas religiões, como no catolicismo. No Novo Testamento Cristo chora quando está diante de sua missão. Na idade média, elas evidenciavam a presença divina dentro da Igreja. Era uma prova da manifestação de Deus no corpo. O homem que as produz nesse capítulo é uma espécie de messias a salvar os seus escolhidos com suas lágrimas e seu esperma.

A protagonista encontra o alvo. No entanto, para a moça ser levada para viver entre os puros sua irmã precisa morrer. É o que diz uma profecia. A irmã é gentil demais para se colocar como um obstáculo no caminho da escolhida. Mas a protagonista se contamina nessa busca. A discussão central deste trecho é sobre quais sacrifícios individuais alguém faria para defender um ideal de mundo. Há manipulação por meio da fé e exploração sexual.

Cada um desses capítulos tem seu próprio tom e há equilíbrio entre eles. Os carros, com seus pneus cantando e motores roncando, agitam o espectador e ajudam a construir o ritmo. O início fornece algumas doses de adrenalina junto com as cenas de acidentes automobilísticos e atropelamentos. A próxima história pisa no freio. Parece muito lenta. Não há automóveis. O tom parece mais calmo. Mas é tão violenta quanto as outras. Já a última parte volta a agitar o espectador ao colocar em cena um esportivo sempre rugindo em alta velocidade.

O filme, de modo geral, explora um dos principais impulsos da espécie humana. O sexo. Ele é o prêmio no primeiro capítulo quando o protagonista se submete completamente aos patrões. É o que torna tão difícil a ausência da esposa desaparecida no capítulo seguinte. E se torna sagrado na parte final. Todos os caminhos levam ao sexo. Pulsão de vida a aflorar sob algumas doses de violência e morte.

Tipos de gentileza é típico do cinema de Yorgos Lanthimos. Sua filmografia é composta por uma coleção de histórias bizarras. Em Dente canino (2009), por exemplo, um pai priva a família do contato com o mundo fora dos limites de sua casa e precisa suprir todas as necessidades dos filhos, inclusive sexuais. Em Alpes (2011) um grupo oferece tratamento de luto interpretando recém-falecidos para seus familiares. O lagosta (2015) conta a história de um homem solitário em um mundo no qual é proibido ser solteiro. Já em Pobres criaturas (2023) uma mulher precisa aprender a viver após ser reconfigurada com a substituição de seu cérebro por outro de um bebê. As raízes do cineasta se fincam no extraordinário, no maravilhoso. Essa excentricidade característica de sua filmografia brota sem receios no longa-metragem de 2024.


Eduardo Barbosa ▪ 21 set 2024

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Tipos de gentileza

Título original: Kinds of kindness
Ano: 2024
Duração: 2h 44min.
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Yorgos Lanthimos e Efthymis Filippou.
Elenco principal: Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margareth Qualey, Hong Chau e Yorgos Stefanakos.
Origem: Estados Unidos, Reino Unido.
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