Mostrando postagens com marcador Regra 34. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Regra 34. Mostrar todas as postagens

12/08/2024

A erotização seletiva em Regra 34 (2022), de Júlia Murat

Na personagem principal de Regra 34 reside o significado do título do filme de Júlia Murat. Simone, a protagonista interpretada com esmero por Sol Miranda, está se preparando para atuar como defensora pública. Durante o dia a moça acompanha discussões jurídicas em aulas de Direito e se empenha no combate à violência contra mulheres. No cair da noite transforma-se em uma profissional a desempenhar atividades laborais de entretenimento para adultos na internet. As esferas de trabalho da vida noturna online e diurna offline permanecem estrategicamente separadas. De certa forma, tudo corre bem nesse seu mundo de equilibrista sobre as cordas bambas da moralidade ali vigente. Até esse ponto de sua trajetória o único objetivo do labor virtual parece ser a renda obtida com o pagamento feito pelos seus fiéis clientes. Até o início do segundo ato introduzir um incidente incitante a convidá-la para outras aventuras. Ela é apresentada a um novo universo sexual por uma de suas amigas a questionar-se sobre raça, reiteração de processos históricos de violência e BDSM em um vídeo pornô com uma mulher negra. Em um primeiro momento Simone parece desinteressada no assunto. Depois revê as cenas. E surge um começo de excitação.

O segundo ato enfatiza a resposta a esse chamado à aventura em detrimento da exploração das possíveis incoerências da vida dupla de Simone. Quanto mais se sente impotente em sua tarefa de desconstrução de um mundo estruturado pela violência contra mulheres, mais fica propensa a violentar o próprio corpo para obter prazer e dinheiro. Ao se deparar no estágio da defensoria com as falhas institucionais da proteção de uma vítima de violência doméstica ela começa a praticar atividades sexuais com sufocamentos. Mais tarde ao defender no tribunal um réu acusado de violência doméstica, e é seu papel como defensora pública defender criminosos, ela busca práticas sexuais com mais violência. É como se necessitasse de punição a cada choque entre seus valores e os resultados do seu trabalho na defensoria pública. Simone pouco se importa com as regras organizadoras do BDSM. Mas, por outro lado, tem alto interesse  nos regramentos jurídicos balizadores de sua profissão diurna. Se na defensoria as leis são abundantes, na outra esfera de sua vida as regras se desvanecem pouco a pouco, até não sobrar nenhuma. O filme não explora diretamente os riscos de uma profissão fazer ruir a outra. O roteiro está mais interessado na escalada sem limites da protagonista em direção ao uso de práticas violentas para extrair e oferecer prazer.

O longa-metragem levanta várias questões e joga para o espectador qualquer esboço de resposta. Uma mulher negra a praticar sadomasoquismo seria a introjeção de uma violência histórica vivida por seus antepassados? É ético uma defensora pública também ser uma prostituta virtual e praticante de BDSM? Há incoerência em uma mulher a defender outras mulheres da violência patriarcal se submeter a práticas de sexo violento para oferecer prazer aos seus clientes homens? A agência de Simone, enquanto sujeito feminino emancipado, lhe permite ressignificar as violências históricas sofridas pela mulher negra e transformá-las em prazer sexual e lucro? O roteiro, redigido pela diretora e mais três roteiristas, instiga-nos a pensar sobre tudo isso, mas não oferece respostas fáceis. É um convite ao debate.

Algumas cenas são difíceis de acompanhar e o grau de tensão é cumulativo. A trilha sonora durante as últimas cenas do ato final são perfeitamente calibradas para um clima de apreensão e medo. Incomodar o espectador é a tônica do longa. Somos obrigados a fazer parte da carteira de clientes de Simone. Vemos sua performance a partir da tela de um computador e atrás da câmera. É tudo explícito para seus dois públicos, os pagantes em tokens e os pagantes de ingressos. Simone sente prazer e angústia.  Se sufoca e goza. Se corta e goza. Convida um homem desconhecido, praticante de BDSM, para sua casa sem se importar com regras e goza ao sofrer com as batidas na porta. Instaura-se um crescente mal-estar tanto na protagonista quanto no espectador. Os níveis de violência auto-induzida só aumentam. É como se fôssemos uma parte daquele público voyeurista com o qual ela faz renda e se aniquila.

O conjunto de atores principais oferecem atuações impecáveis. As cenas de Simone com seus amigos têm uma naturalidade impressionante. Parecem gravadas com uma câmera escondida a gerar espontaneidade. Já a construção de personagem deixa um tanto a desejar para o espectador. Pouco se explica sobre a fonte de renda de Simone. Foi escolha ou não? Como ela foi parar ali? A personagem agradece aos clientes por ter conseguido a vaga na defensoria, mas isso é pouco para o espectador. Se Simone pagou por uma faculdade se prostituindo, a prostituição levou-a ao cargo de defensora pública. O filme sugere isso, mas não explora e opta por uma análise profunda de sua entrada furiosa no mundo do BDSM. Parece, ao fim e ao cabo, um roteiro inspirado em Queen Of Hearts (2019) de May El-Toukhy. Este outro filme narra o caso de uma advogada a defender crianças vítimas de violência sexual enquanto se envolve sexualmente com um adolescente e lhe arruina a vida. O cuidado com a construção de personagens no longa francês é notável e nem por isso oferece respostas fáceis como papinha para todas as questões presentes no roteiro.

Apesar de Regra 34 ter algumas qualidades, como o trabalho de interpretação de Sol Miranda, Lucas Andrade, Isabela Mariotto e Lorena Comparato, há uma sexualização seletiva de alguns corpos. Simone e seus três colegas, Coyote, Lucia e Nat, constróem uma rede sexo-afetiva. Ela e Coyote são pretos. Lucia e Nat são mulheres brancas. Há bastante nudez frontal dos personagens negros, seus corpos são milimetricamente exibidos em cena. Vemos seios, vagina, pênis. Isso não ocorre com personagens brancos. São poupados. O problema não é nudez e sexo em excesso, mas quais corpos são pura nudez e puro sexo.

O filme parece beber naquela antiga matriz estruturante do pensamento dos brancos da qual brotam pretos e pretas sexualmente estereotipados. Todas as mulheres negras são fogosas e sensuais. Todos os homens pretos são pauzudos e bons de cama. Isso explica a sexualização seletiva na tela de Julia Murat. Para essa tal matriz, fundante da economia da escravidão, negros são próprios para satisfazer necessidades materiais e sexuais de brancos. A exploração apresentava-se de forma dupla dentro desse contexto, escravizados eram mão-de-obra e objeto sexual. Personagens brancos tendem a não ser apresentados como Simone ou Coyote, partindo dessa perspectiva retrógrada, porque a branquitude ainda é considerada por boa parcela da sociedade brasileira como um traço de homens de boa moral e boa conduta.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), 84,1% dos mortos em intervenções policiais resultantes em mortes no Brasil em 2021 eram negros e 15,8% eram brancos. A filtragem racial a organizar abordagens policiais é uma evidência explícita desse padrão de seletividades a partir da raça. A polícia mata mais negros do que brancos porque este recorte racial tem mais criminosos ou porque as polícias veem a pele branca como atestado de idoneidade? A carne negra é descartável porque em sociedades racistas a negritude só gera bandidos e mulheres sedutoras demais a corromper pais de famílias brancas. Se dentro dessa matriz todas as mulheres negras são objetos sexuais, as mulheres brancas precisam ser o oposto, não podem ser desnudadas pois são feitas para o casamento. A pele alva as fazem automaticamente virginais, intocáveis e não-erotizáveis. A branquitude é uma fôrma de deuses e santas. É um pecado grave descobrir a nudez e erotizar santas. Já a negritude é a fôrma de bandidos e putas.

Esse problema de sexualização a partir de filtragem racial anula em grande medida as qualidades do filme. Não permanece de pé algumas questões interessantes sobre a capacidade de agência feminina de fazer do próprio corpo e de práticas sexuais violentas uma política subversiva de emancipação. A frase na qual Simone diz: "sinto muito se meu tesão não é suficientemente político para você", explica a transformação da dor e angústia da personagem em prazer e lucro, mas não dá conta de explicar por que apenas corpos pretos são milimetricamente erotizados na história. Não há emancipação quando pretos continuam presos em estereótipos historicamente construídos por brancos. Não é o dinheiro que emancipa, mas sim a liberdade de não ser o que dita um padrão histórico racista.Vale a pena assistir Pleasure (2021) de Ninja Thyberg para conferir como é possível trabalhar com a emancipação feminina pelo sexo em um bom roteiro sem cascas de banana.

Durante o Festival de Cinema do Rio em 2022 Julia Murat afirmou ter temido mudar Simone de uma mulher branca da ideia do roteiro original para a mulher negra da versão final. Ela tinha razão. Foi um erro. A mudança feita de forma descuidada, pincelou um ou outro toque de discussão sobre raça, e foi fundo na erotização seletiva de corpos pretos. Isso mostra que os roteiristas desconhecem ou não se interessam por discussões sobre o processo histórico de estereotipagem de homens e mulheres pretos e parecem ter incluído pretos na trama por pura necessidade de dar uma cara de diversidade para o filme. Isso costuma não funcionar. As questões envolvendo raça não são tão simples quanto apertar um botão em uma tela e trocar a cor de uma pele em poucos segundos. Há um processo histórico a explicar porque homens pretos e mulheres pretas são alocados em atividades específicas dentro de sociedades racistas. Não levar isso em conta ao criar roteiros com personagens desse recorte social produz reiterações racistas, não importa se o filme tem tons feministas. Afinal de contas, uma sociedade de economia escravocrata forjada na exploração de pretos e indígenas e mulheres precisa discutir seu desenho de sociedade a partir da intersecção entre raça, classe e gênero. Regra 34 ignora tudo isso e resulta em só mais um filme para discutirmos os problemas da representação negra no cinema dos brancos.

Eduardo Barbosa ▪ 12 ago 2024

___________________________

Regra 34

Ano: 2022
Duração: 1h 40min.
Direção: Júlia Murat
Roteiro: Júlia Murat, Gabriela Capello, Roberto Winter e Rafael Lessa.
Elenco principal: Sol Miranda, Lucas Andrade, Isabela Mariotto e Lorena Comparato.
Origem: Brasil, França
___________________________