Eduardo Barbosa ▪ 14 out 2023
Edward Parker (Richard Arlen) é um náufrago que foi resgatado por um navio que está levando animais selvagens para uma pequena ilha não mapeada. Parker está tentando chegar até uma determinada cidade, onde irá se casar com a sua noiva, mas ao se desentender com o capitão do navio é abandonado na pequena ilha na qual os animais foram desembarcados. Lá, Parker conhece o proprietário da ilha, o excêntrico Doutor Moreau (Charles Laughton), um cientista britânico exilado, que vive com nativos de aparência estranha. Logo, o náufrago descobre a verdade dos bizarros experimentos evolutivos que Moreau vem realizando em sua ilha que consiste em tentar transformar animais em humanos. A questão central do filme é sobre se tornar humano. O tempo todo o roteiro mostra uma espécie de processo conduzido pelo cientista. Os humanos de laboratório precisam ser docilizados, civilizados, moralizados, adestrados de acordo com as normas sociais vigentes.
A mulher-pantera, uma protagonista, precisa conquistar o homem originalmente humano recém-chegado e demonstrar mais afeto do que desejo sexual. Na perspectiva de sociedade do cientista que a criou a mulher é um ser se apaixonando antes de se envolver sexualmente com um homem. É a ideia de amor romântico estruturante das relações monogâmicas ocidentais.
Também há um outro ponto interessante nesta personagem, a construção social do corpo. Ela precisa ter um corpo sem qualquer vestígio animal. Não pode ter muito pelo, nem muita gordura, muito menos as garras naturais nascidas consigo. Isto é, o corpo do humano não é apenas biológico, ele também é construído socialmente, se não o fosse, por que as lipoaspirações, harmonizações faciais, as academias de musculação e ginásticas lotadas?
Já o Homem-macaco precisa de outro comportamento. Ele precisa possuir a humana recém-chegada a todo custo, inclusive tentando uma relação sexual forçada. Ou seja, a ideia de que a masculinidade é força, é subjugação de sexos considerados frágeis. A prova de condição humana dessa criatura masculina é a subjugação de uma fêmea de sua espécie. Um homem de verdade, dentro dessa construção, é aquele surdo para o não de uma mulher que o atrai. É a estrutura de formação do homem abusador, o violento, o estuprador.
O cientista na ilha ensina humanidade para suas criaturas sem vestígios de empatia pelo sofrimento delas. O roteiro evidencia esse seu traço comportamental na exibição de uma cena do quarto da dor, um local onde se faz vivissecção nesses humanoides. O mais importante para ele é a obediência das leis que o mantêm como uma espécie de divindade na ilha, ser superior a pairar acima de todos. Um Pai. Sua presença deve ser respeitada e cultuada e se origina nela a imposição da Ordem. É por meio de suas leis que se instaura um estado civilizatório no lugar do estado de natureza. Ali, após as transformações, nenhum desses novos humanos pode matar outro de sua espécie.
Andrea Torrano, no artigo O monstro na política, parte da afirmação hobbesiana de que o homem é o lobo do homem para dizer que existe uma bestialidade constitutiva do ser humano. E é isso que o filme sugere o tempo todo. Nós jamais conseguimos domar totalmente nosso eu-selvagem que nos constitui enquanto animais. Por isso a personagem da mulher-pantera tenta emular o comportamento civilizado da mulher ocidental, mas no último ato do filme o retorno das garras naturais no lugar das mãos criadas em laboratório mostra que ela nunca deixou de ser a fera que sempre foi. Estas criaturas de A ilha das almas perdidas escancara a precariedade da identidade do sujeito humano. Ela pode ser perdida.
Um outro ponto do filme para o qual podemos olhar para traçar relações entre os personagens e a teoria do estado de Hobbes é a figura do cientista. Ele parece representar o Estado. É dele que parte a Lei e a Ordem, é ele quem cria a noção do que é civilizado, e também é ele quem executa as criaturas que fogem do padrão de comportamento que se espera delas. É ele quem dá a vida e é ele quem a suspende. O cientista é como se fosse o próprio Leviatã. É um monstro que guarda em si a nossa própria monstruosidade constitutiva do Ser. Por isso ele não pode sentir empatia pelo sofrimento daqueles que estão sob seu domínio. Ele detêm o monopólio do uso da violência, como diz Max Webber, e a utiliza para manter a ordem política e social em seu território. O Leviatã é uma espécie de congregação da nossa bestialidade. Ele faz o manejo delas por meio de leis que as aprisiona. Ou seja, nos defendemos da nossa monstruosidade criando um outro monstro para nos defender de nós mesmos. O Estado é como a gárgula a afastar o mal que está sempre à espreita, esperando uma fissura para seu retorno.
É por isso que o estado que nasce a partir do pacto social entre os homens não anula o estado de natureza. Sempre há um estado de natureza dentro do sujeito humano e também dentro do estado civilizador. Se assim não fosse, por que existiria o dispositivo do estado de exceção? É a partir do dispositivo do estado de exceção que o estado legitima a suspensão do direito à vida daqueles que são considerados uma ameaça à ordem. Ou seja, é um retorno do estado de natureza. Aquilo que o sujeito humano recalca individualmente, sua bestialidade, retorna com o Estado. Onde há recalque há retorno.
Andrea Torrano afirma que o Leviatã produz uma exterioridade do nosso interior. A fera parece estar fora de nós, afastada. Mas há sempre um devir-lobo que coloca em permanente instabilidade o que chamamos de humano. Estamos sempre a um passo da bestialidade. Somos sempre monstros em potencial. Então, o humano é essa criatura entre um devir-animal e um devir- humano. É nesse entre que se estrutura o sujeito humano. Luta-se para uma aproximação do que é tido por humano (cultural) e luta-se para se afastar do que é tido por selvagem (e natural).
Mas como o filme mostra o retorno das garras da mulher-pantera que havia atingido um ponto ótimo de evolução humana, cultural e biológica, de um jeito ou de outro, o recalcado sempre retorna. Dito de outra forma, nós jamais deixamos de ser o lobo que tanto tememos.
Island Of Lost Souls
Ano: 1932
Duração: 1h 10min
Direção: Erle C. Kenton
Roteiro: Waldemar Young e Philip Wilie
Elenco principal: Charles Laughton, Richard Arlen, Leyla Hyams, Bela Lugosi e Kathleen Burke
Origem: EUA